Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938.
Publicado
originalmente na Semana Ilustrada,
Rio de Janeiro, de 08/12/1861 a 26/06/1864.
CLÍNICA
CIRÚRGICA DO DR. SEMANA
8 DE DEZEMBRO DE 1861
O Dr.
Semana tem a honra de participar ao respeitável público, que se acha nesta
corte, onde fixou sua residência, pronto sempre a ministrar aos necessitados os
socorros de sua infalível ciência.
Não produzirá a relação das
memórias que tem no Instituto Imperial de França e que o fizeram conhecido em
ambas as Américas. Limita-se a publicar, apenas, o resultado de sua clínica
durante o curto espaço de tempo em que aqui se acha.
Estes dados estatísticos são úteis: trazem proveito. A humanidade
lucra com eles, quando insertos nas folhas diárias de grande extração, porque
fica sabendo onde ir procurar a saúde e conhecer de perto quais têm sido os
triunfos da ciência.
Aí vai a estatística.
Tumores sub epidérmicos. — Operei 200. Estes tumores são
formados por uma substância perlea mais ou menos consistente. Opero-os com uma simples manobra digital, ou quando
muito com o auxílio da extremidade aberta do cilindro oco da chave da máquina
gnomônica de Nuremberg. Todos quantos operei eram do rosto, e foram coroados de sucesso.
Ditos microscópicos ou
acari-phlyctenoides. — Tratei de alguns por meio da grattage com a rugina unguicular do Dr. Egratigneur.
Quistos. — Operei 40. Emprego metódico das agulhas d'Inglaterra (por um processo meu). Todos estes quistos eram formados pelo pulex penetrans, com acidentes locais, como
phlogose, prurido, tensão e calor urente. Consegui banir da prática o uso da
nicotina em pó e o carbonato calcário para favorecer a cicatrização.
Hérnias glóssicas através do orifício
oral. — Tenho
curado um grande número sem operação sangrenta. Reduzo-as, por meio de uma
hábil e engenhosa combinação de esforços musculares. Operação rápida e sem dor.
N. B. — Emprazo os meus colegas desta corte para uma apreciação e
discussão, cujo proveito será seguro. Este acidente de hérnias glóssicas é mais
comum do que se pensa, sobretudo em indivíduos de temperamento dúbio e caráter
ingênuo. Dois casos vi complicados com luxação da mandíbula.
Corpos estranhos. — Fragmentos dos
tecidos musculares tendinosos e aponeuróticos, decoctos e putrefatos,
profundamente implantados em vastas escavações devidas à cárie dos processos
odônticos dos maxilares. Odontalgias. Extração por meio da engenhosa alavanca
do Dr. Curedent.
Excretos superabundantes. — Dez casos de substância superexcretada das glândulas ceruminosas dos condutos
auditivos externos. Emprego da mencionada alavanca, modificada por mim.
Superexcreção das glândulas de Meibonnio; imensos casos. Loções metódicas com
protóxido de hidrogênio; cura constante.
Ortopedia. — Desvio sinistroso dos
apêndices capilares da extremidade cefálica do corpo, no plano compreendido
entre os pontos occipital, frontal e temporais, incluindo vértex. Emprego
constante (em 100 casos) do myriodonte de caout-chouc dos Drs.
Chassepoux e Niobey.
Amputações. — Dos extremos livres
dos referidos apêndices pelo processo de Mr. Beaumely e com tesouras de minha
invenção. Casos numerosos; cura sem acidente.
São estas as operações que tenho praticado nesta corte em uma
quinzena. Possuo agradecimentos, cientificamente redigidos e com assinaturas
reconhecidas, que podem ser examinados no meu consultório, à Rua dos Arcos n.°
66.
Dr. Semana.
Pelo Dr. Semana
PRÓLOGO, CAVACO OU ADVERTÊNCIA
27 DE JULHO DE 1862.
O meu moleque, apesar das grandes luzes que possui, pediu-me que
escrevesse umas preleções de gramática, para que por elas pudesse aprender a sua interessante consorte,
que infelizmente é um poucochinho estúpida. E, como eu reconheça que é de
necessidade apurar o espírito e o classicismo da língua de tão distinta
brasileira, resolvi publicar tais preleções, que bem podem
aproveitar por aí além a quem desconhecer o idioma do unóculo de Macau.
Quem as quiser ler pode fazê-lo, uma vez que seja assinante do
meu jornal, ou o compre por 500 rs.; quem não quiser, que não queira, porque
para mim é o mesmo, e estamos em um país constitucional, em que a vontade do
cidadão é livre e a da cidadã depende da do marido, do pai, ou do irmão.
Não peço elogios, porque a obra os não merece; mas peço
paciência e giro.
Dr. Semana.
INTRODUÇÃO
A gramática semanal é a arte, que ensina a declarar bem os
pensamentos da Semana Ilustrada,
por meio de caracteres, ou de textos burlescos e chistosos.
Divide-se em quatro partes Ortografia,
Prosódia, Etimologia e Sintaxe.
A Ortografia ensina a
escrever certo o que sai publicado na Semana, quando o tipógrafo
não comete algum erro, ou o revisor se esquece de emendar alguma letra trocada.
A Prosódia ensina, a saber, tudo quanto a Semana oferece a seus leitores, uma vez que estes não sejam meninos de escola, ou
carroceiros que só saibam assinar o nome — o que é muito raro entre os
entusiastas do referido jornal.
A Etimologia ensina a conhecer a origem das palavras e caricaturas da Semana, se, porventura, os leitores forem
espirituosos; no caso contrário, a etimologia é, para eles, uma parte supérflua da gramática, e então podem pedir aos
vizinhos que a expliquem, ou aos missionários capuchinhos do Castelo.
A Sintaxe ensina a ligar todas as palavras e caricaturas, para que se compreenda que a Semana Ilustrada sabe onde tem o nariz, e não
precisa do espírito do Punch ou do Journal pour rire, para divertir os
filhos do Brasil.
CAPÍTULO
I
PARTES DA ORAÇÃO
Oração é o amontoado de palavras
chistosas com sentido completo, para fazer rir os leitores da Semana.
Divide-se em: Artigo, Nome, Pronome, Verbo, Particípio,
Advérbio, Preposição, Conjunção, e Interjeição.
§ 1. ° — DO ARTIGO
Artigo semanal é um pedaço de
escrito, com princípio, meio e fim, que serve para divertir ou aborrecer a quem
o lê. Exemplo: As memórias de um tunante; As
vespas dramáticas; e as Preleções de gramática para uso da Negrinha.
O Artigo semanal pode ser masculino, feminino, ou neutro, conforme o gosto de quem o lê. Serve
para encher as colunas da Semana Ilustrada, e aumentar o número de suas páginas. Sem o Artigo, a Semana publicaria unicamente caricaturas.
§ 2.° — DO NOME
Nome semanal é uma voz empregada
para conhecer as coisas, que merecem reparo ou caricatura por este mundo de
Cristo. Exemplo: Guarda fiscal; Pedestre; Leão da
rua do Ouvidor.
O Nome é substantivo, ou adjetivo.
Nome substantivo em geral, e até para a
gramática da Semana,
é aquele que pode estar na oração sem complemento algum. Exemplo: Celibatário; Riala; Frade ou Freira.
Nome adjetivo, também em geral, e até para a gramática da Semana, é aquele que não pode estar na oração sem
algum substantivo. Ex.: Namorado; Camélia; Dr. Semana;
Estômago de meirinho.
O Substantivo ou é próprio, ou apelativo.
Próprio é o que cabe a uma só
coisa ou pessoa. Ex: Papa; Estátua do largo do Rocio;
Subvenção ao teatro de S. Pedro, ou à Ópera Nacional.
Apelativo é o que cabe a muitas coisas ou pessoas. Ex: Egoísmo político;
Classes perigosas do Rio de Janeiro; Vira-casacas; Pensionistas do Estado.
O Adjetivo é ou qualificativo, ou determinativo,
ou possessivo, ou demonstrativo, ou genérico, ou numeral, ou indefinido.
Qualificativo é o que exprime a
qualidade das coisas ou pessoas. Ex.: Chim ratoneiro;
Cantor do Teatro Lírico com abaixamento de voz; Carroça de águas servidas
nauseabunda.
Determinativo é o que determina o
sentido particular e a ação dos nomes que modifica. Ex.: Limpeza pública; Irrigação das ruas.
Possessivo é o que dá uma idéia
de possessão. Ex.: Vereador da Câmara Municipal
dentro do quatriênio; Cambista de bilhetes à porta do teatro; Lavadeira do
Campo da Aclamação.
Demonstrativo é o que dá uma idéia de
designação precisa. Ex: Mãozinha preta no canto das ruas;
Beco das Cancelas para quem tiver bebido cerveja ou mate; Hotel da Europa para
quem tiver fome e quiser gastar dinheiro.
Genérico é o que especifica os
gêneros. Ex.: Anúncio da 4ª coluna dos jornais;
Carne seca podre vendida à pobreza; Manteiga rançosa; Vinho com pau-campeche.
Numeral é
o que dá uma idéia da quantidade, ou ordem. Ex.: Afilhado de
ministro; Cavaleiro e oficial da Rosa; Rua imunda; Taverneiro velhaco; Pedestre
dorminhoco e covarde; Deputado que não fala; Eleitor adulado; Protetor de
viúvas e órfãs desvalidas; Patriotas da algibeira; e Críticos literários.
Indefinido é o que modifica o
nome, representando-o de uma maneira vaga. Ex.: Liberal;
Conservador; Barrigudo; Pai da pátria; Literato; Escritor público; Artista;
Irmão de Ordem Terceira; Homem desempregado.
§ 3.° — DO PRONOME
O Pronome é uma voz que se põe em lugar do nome. Ex: Barão do Engenho de
Baixo, em lugar de João Francisco do Espírito Santo e
Souza. Doutor, em
lugar de Manoel Borromeu. Senado em lugar de Casa com escritos para alugar.
O Pronome é pessoal, ou conjuntivo,
ou possessivo, ou demonstrativo, ou indefinido.
Pessoal é aquele que, as mais das
vezes, representa as três pessoas do verbo. Ex.: — A Semana Ilustrada,
que representa o Dr. Semana, o moleque e a negrinha.
Conjuntivo é o que se acha na
mesma oração, em relação imediata com o nome ou pronome, que representa. Ex.: Deputado quando encontra um Eleitor Criminoso perante o Júri.
Possessivo é
aquele que liga uma idéia de possessão ao nome cujo lugar ocupa. Ex.: Petit-maître a cavalo.
Demonstrativo é o que, por assim
dizer, mostra os objetos que representa. Ex.: Caixa d’água de Catumbi
que custou centenários de contos. Teatro Lírico, que existe desde 1852. O papel
de Mademoiselle no teatro de S. Pedro. Empregado de repartição quando leva o
dia a fumar.
Indefinido é o que não determina
a pessoa ou coisa, cujo lugar ocupa. Ex: Larápio. Procurador.
Adulador. Pretendente.
§ 4. ° — DO VERBO
Verbo é uma palavra com que afirmamos uma
coisa de outra. Ex: As ruas do Rio de Janeiro andam
imundas, porque os fiscais não se importam com isso. O luxo é extraordinário,
porque poucos pagam as suas dívidas. A iluminação a gás não clareia depois de
duas horas da noite, porque mandam apagar metade dos lampiões. As chuvas alagam
a cidade, porque as valas estão sempre entupidas.
O Verbo é ou ativo ou passivo.
Ativo é aquele que
afirma que se faz alguma coisa. Ex.: Botar muito dinheiro fora.
Eleições sem consciência. Dar ajudas de custo sem necessidade. Prover empregos
só por empenhos.
Passivo é o que afirma que uma
coisa já está feita. Ex.: Notas diplomáticas dando
satisfações a qualquer naçãozinha. Asneiras políticas. Víveres falsificados.
Ponte dos despejos na praia de Santa Luzia.
§ 5. ° - DO PARTICÍPIO
Particípio é uma voz que do nome
participa os casos e do verbo os tempos. Ex.: Matéria velha do
Jornal do Comércio. A Nódoa de Ouro. Carroças de Asseio Público.
§ 6. ° - DO ADVÉRBIO
Advérbio é uma voz indeclinável
que, junto ao nome ou verbo, exprime o modo ou circunstância de um e outro. Ex: Guarda-fiscal. Passeio público. Câmara Municipal. Guarda
nacional. Iluminação a gás. Barcas Ferry.
Os advérbios dividem-se em:
Afirmativos. Ex.: Tudo entre nós
é mal feito. Cada um puxa a brasa para sua sardinha. Quem sabe ler, escrever e
contar é uma inteligência.
Negativos. Ex.: A Companhia dos
Ônibus não têm burros gordos. A arborização não é das primeiras necessidades no
nosso país. A lavoura não precisa de braços.
Comparativos. Ex.: Os frades de pedra do largo do Rocio e a Estátua eqüestre. A nova casa
da moeda e o Senado. O teatro lírico e o Circo Spalding and Rogers.
Demonstrativos. Ex.: A ponte das
barcas velhas. O campo da Aclamação. Os negros de tigres com ferro ao pescoço.
Os mendigos às portas das igrejas.
De tempo. Ex.: Daqui a cem
anos teremos esgotos no Rio de Janeiro. Em 1999 o Correio há de melhorar o seu
sistema de entrega de cartas. O Brasil há de ser grande nação quando todas as
outras forem pequenas. O café há de prosperar quando a natureza se lembrar de
dar cabo do bicho.
De lugar. Ex.: Em qualquer
parte fazem-se despejos. O largo de S. Francisco é o salão de baile dos tílburis,
que atrapalham a quem passa. O teatro de S. Pedro é o ponto das quitandeiras de
dote.
De quantidade. Ex.: Falta de
patriotismo. Praticantes nas repartições saídos das escolas. Vagabundos de
esquinas. Ratoneiros de galinhas. Cambistas de teatros e de cavalinhos. Moças
namoradeiras. Negociantes de funda.
De modo. Ex.: Autoridades que maltratam as partes. Negras minas atrevidas.
Professores que tratam bem as meninas, para depois a polícia mandar-lhes fechar
os colégios.
§ 7. ° — DA CONJUNÇÃO
Conjunção é uma voz
indeclinável, que serve de atar ou ajuntar uma palavra ou oração com outra.
Ex.: Liga de cetim branco da marca “Honny soit qui mal y pense”. -Pontes flutuantes da Companhia Ferry.
Estola de padre no ato do casamento. Cadarços de ceroulas.
As conjunções dividem-se em:
Copulativas. Ex.: Pombo em cima
do jacá quando dá comida aos filhos. Línguas viperinas, que falam da vida
alheia. Solda de consertador de porcelanas da Rua do Parto.
Condicionais. Ex.: A menina bonita
casa se não tem muitos namorados. O corpo legislativo marchará de acordo se não
houver interesses pessoais. Os alfaiates farão muitas casacas contanto que não
elevem o preço dos feitios.
Conclusivas. Ex.: Os homens que se casam perdem a liberdade. Depois de um grande jantar
tomam todos a sua xícara de café (há exceções a favor
do chá). Quando um ônibus de bestas magras está cheio, cada
passageiro é obrigado a pagar o seu bilhete (não há
exceções).
Declarativas. Ex.: Eu te amo.
Minha mulher anda sem meias por casa, e não penteia os cabelos. As gravatas de
meu marido são retalhos dos meus vestidos.
Disjuntivas. Ex.: Aperto de mão
entre inimigos. Apartes no parlamento. Intrigas nos bastidores. Filhos
malcriados de dois amigos. Ciúmes de namorados. Miséria repentina em qualquer
casa conhecida.
Negativas. Ex.: Não há quem
mande ajuntar a lama quando chove. Não há costureira que não saiba fazer ponto
atrás e bainha de laçada. Não há repartição pública que não tenha
mexeriqueiros.
Causais. Ex.: A inveja afasta
os homens uns dos outros. O talento chama inimigos. O interesse é o irmão de
muitas amizades.
§ 8.° — DA INTERJEIÇÃO
Interjeição é uma voz
indeclinável, que sem ajuda do verbo exprime por si só os vários afetos e
paixões do nosso ânimo. Ex. Que cidade do Rio de Janeiro
imunda! Que escuridão nas ruas depois de uma hora da noite! Que cavalos de
tílburi tão lazarentos!
As interjeições são:
De declamação. Ex.: Oh! escola dramática do teatro de S. Pedro!! Ah! que oradores às vezes
nas câmaras! E a maior parte dos pregadores de igreja!
De sentimento e de implorar socorro. Ex.: Que carroças de asseio público! Que chapéus
monstros nas cabeças dos pretos do ganho nas horas de mais concorrência! Que
quantidade de cambistas de bilhetes de loteria às portas dos tesoureiros! Que
de benefícios nos teatros!
De espanto. Ex.: Quanta mulher feia no Rio
de Janeiro! Que número de deputados mudos! Quanto militar poltrão!
De repugnância. Ex.: Que menina presunçosa! Abaixo os ganhadores políticos! Um homem de gravata
de três cores!!
De dor. Ex.: Que de barras de vestidos na lama! Oh! botas de quinze dias com
buracos! Ai, que cantora sem voz!
De admiração. Ex.: Que alinhamento de ruas para casas novas! Que de pobres nas igrejas!
Quanta negra de vestido de moiré antique.
De prazer. Ex.: Oh! minha boa cama! Por hoje nada mais! Aos leitores de preleções de
gramática, adeus!
Preposição é uma voz indeclinável,
que serve para reger os nomes, e para compor os verbos e os nomes.
Ex.: Partido — Progressista
Constitucional. Contrabandos — abrilhantados. Encampações — Unidas —
Industriosas. Correio — Mercantil. Harpocrático — a — respeito — de — Política.
Diário — Mudo — Silencioso — idem —idem.
As Preposições regem Genitivo, Dativo, Acusativo e Ablativo.
Mutandis mutandis vêm todas elas dar no
mesmo. Ex.: Descrença — político — social —
brasileira. Crédito — sem — crédito — monetário. Sanguessugas — parlamentares.
Conservadores — liberais e liberais — conservadores.
CAPÍTULO
II
DA SINTAXE
A Sintaxe ou é natural ou figurada.
Sintaxe natural é a que se funda nas
regras gerais e ordinárias da Gramática. Ex: Todo o deputado tem
afilhados. Quem não tem dinheiro não tem amigos. O interesse individual é a grande
mola dos partidos políticos do mundo.
Sintaxe figurada consiste no uso das figuras. Ex.: Ser hoje liberal e amanhã
conservador e depois puritano e depois coisa nenhuma. Prometer casamento a uma
menina pobre, roer a corda, e amanhã casar com uma noiva rica. Andar hoje de
cotovelos rotos e amanhã em carruagens com cavalos do Cabo. Ganhar 50$000 de
ordenado e ir a bailes, teatros e cavalinhos com a família, sempre de carro e
cheios de sedas e de brilhantes. Dar soirées caloteando
os confeiteiros e pedindo xícaras emprestadas.
§ 1.0 — DA SINTAXE NATURAL
O Sujeito, que exercita a significação do verbo do modo finito, vai para nominativo, com
quem o verbo concorda em número e pessoa. Ex.: Os ministérios e a
maioria das câmaras. A independência de caráter e o Dr. Semana. Os candidatos
da Senatoria de Mato-Grosso e os eleitores da mesma província.
Aquilo que se afirma ou nega do mesmo sujeito, ou a ele se refere, também vai para
nominativo. Ex.: Têm passado alguns contrabandos na
Alfândega. Nem todas as caixas de zinco trazem fundos falsos com brilhantes. A
Biblioteca Pública só está aberta às horas em que ninguém precisa dela. A maior
parte dos cavalos dos tílburis anda caindo pelo meio das ruas. O beco das
Cancelas continua imundo.
Concorrendo na oração um sujeito da primeira pessoa do singular com outro
da segunda ou terceira, poremos o verbo na primeira do plural. Ex.: Um empregado inteligente sem proteção, e outro estúpido, afilhado de
barão ou de conselheiro, este é o que tem acesso. Brasileiro e estrangeiro para
qualquer emprego, este é o escolhido. Estudante aplicado e estudante vadio, o
vadio é o aprovado.
28 DE SETEMBRO
DE 1862.
Concorrendo na oração um sujeito da segunda pessoa do singular
com outro da terceira, poremos o verbo na segunda do plural. Ex.: Um afilhado de figurão e um pai de família para o lugar de pedestre.
Um noivo rico e estúpido e um pobre e inteligente. Uma modista francesa e outra
brasileira.
Concorrendo na oração muitos sujeitos, todos da terceira pessoa
do singular, poremos o verbo na terceira do plural, concordando com todos; ou
na terceira do singular, com um só. Ex.: Um deputado das
maiorias. Uma inteligência engarrafada. Um capacho de ministros. Uma rapariga
namoradeira.
Os nomes adjetivos, pronomes e particípios concordam com seus
substantivos em gênero, número e caso. Ex.: Feliz — Bertha. Bela — Armina. Ir — as. Vilas — Boas. Rosa — Linda.
Feliz — Mina. Flor — em — tina. Eu — fêmea. Domingos Dias. — Já — sinto —
Arruda.
Os relativos concordam com os seus substantivos antecedente em
gênero e número, e com o subseqüente em gênero, número e caso. Ex.: As parelhas dos ônibus. Os guardas-fiscais. As barcas de Niterói. Os
anúncios de leilões. Os dramas do teatro de S. Pedro.
O sujeito, que exercita a significação do verbo do modo
infinito, vai para o acusativo. Ex.: Comandante de batalhão da Guarda
Nacional. – Professor de primeiras letras. Praticante de repartição, que só
tira cópias e registra. Taquígrafo parlamentar.
Aquilo, que se afirma, ou nega desse sujeito, ou para ele se
refere, também vai para o acusativo. Ex.: Os Comandantes dos
batalhões às vezes nem sabem mandar. Nem todos os professores de primeiras
letras estão habilitados para ensinar. Há praticantes de repartição que não
sabem se o — c — acompanhado de — a — o ou — u — deve ser cedilhado. Os
taquígrafos parlamentares vêem-se atrapalhados para entender certos oradores.
Pelo caso por que se faz a pergunta, por esse mesmo se dá a
resposta. Ex.: Quem tem culpa de estarem às ruas
imundas? A Câmara Municipal. Quem não dá cabo dos capoeiras? A Polícia. Para
que servem os pedestres? Para coisa alguma. Quem deve evitar os ratoneiros?
Cada um
§ 2.° — DA SINTAXE DE REGÊNCIA
O nome, que significa o senhor ou possuidor de alguma coisa, ou
a quem ela pertence, põe-se no genitivo. Ex.: Marido. Inspetor de
quarteirão. Fiscal da cidade. Água entupindo as valas. Capoeiras em domingo.
Aos adjetivos, que significam coisa rica, pobre, ciente,
ignorante, vazia, carregada, vestida, despida, lembrada, esquecida,
participante, etc., se ajunta genitivo, que significa aquilo de que há riqueza,
pobreza, ciência etc., etc. Rico de notas falsas. Pobre de boa
educação. Ciente de estupidez. Ignorante das funções que exerce. Vazio de bom
senso. Carregado de crimes e de torpezas. Vestido à custa dos alfaiates.
Despido de vergonha. Lembrado quando há vontade de dar gargalhadas. Esquecido
quando não aparece. Participante dos prejuízos. *
Aos verbos que significam acusar, absolver, se ajunta genitivo, que significa aquilo de que se acusa, ou absolve. Ex.: A câmara municipal é acusada de deixar que as ruas continuem como
estão. As Autoridades são acusadas de não tomarem providências para que não
haja uma catástrofe das barcas Ferry. Os pedestres são absolvidos do pouco que
fazem, porque são quase todos inválidos. Os teatros são absolvidos de estarem
quase às moscas, porque o público não os freqüenta.
O nome, que significa o louvor, ou vitupério, que se dá a
alguém, põe-se: Todas as Câmaras Municipais são
descuidadas. O Graça e o Vasques são violetas no Ginásio. O Dr. Semana é o
rapaz mais bonito do Rio de Janeiro. As carroças do Asseio Público são vidros
ambulantes de Frangipani.
CAPÍTULO
III
DO DATIVO
Aos verbos Confiar, Dar, Entregar, Enviar,
Mandar, Obedecer, Remeter, Recomendar e outros, se ajunta dativo, que significa
pessoa, a quem se confia, dá, entrega, etc. Ex.: A Câmara Municipal
confia na indolência do povo para não trazer a cidade limpa e asseada. O
Tesouro dá muito dinheiro sem saber para o quê. A segurança pública quase
sempre está entregue à boa índole dos cidadãos. Há médicos que enviam os
doentes para o outro mundo sem saberem de que moléstias lhes morrem. Ninguém
manda examinar se a carne que se come é boi pesteado. No Brasil, por isso que
todos são grandes, ninguém gosta de obedecer. Remetem-se cartas pelo correio,
que às vezes não chegam ao seu destino. Todas as falas do Trono recomendam a
economia, mas... bota-se muito dinheiro fora.
Aos adjetivos, que significam coisa útil, prejudicial, danosa, proveitosa,
agradável, desagradável, decorosa, leal, desleal, etc., se ajunta dativo, que
chamam de perda, ou de proveito. Ex.: Se não houvesse
Câmaras Municipais seria uma grande utilidade para o país. Os guarda-fiscais
prejudicam as algibeiras. A falta de asseio das ruas é danosa para a
salubridade pública. Os empregos públicos são só proveitosos para certa classe
de gente. A vida de representantes da Nação é a mais agradável de todas as que
existem. As preleções de gramática devem ser desagradáveis para muitos sujeitos
que têm mazelas. Desprezam-se hoje as posições decorosas pelas lucrativas.
Procura-se hoje um homem leal no Rio de Janeiro e só se encontra o major
Leandrinho. Os amigos íntimos são quase sempre desleais.
CAPÍTULO
IV
DO ACUSATIVO
O verbo ativo tem
depois de si acusativo, que é aquele sujeito, a quem se dirige a significação
do verbo. Ex.: A crônica de um guarda-fiscal. A nomeada de tenor do teatro
lírico. Os respingos das carroças do asseio público.
O lugar para onde
alguém vai, põe-se em acusativo regido da preposição a ou para. Ex.: A
alfândega caminha para o caos. Os vapores peruanos vão sossegados para o seu
país. A dignidade nacional vai plantar batatas nas margens do Amazonas.
A oração feita pela voz ativa pode mudar-se para a passiva deste
modo: o que era acusativo passa para nominativo, com quem o verbo concorda em
número e pessoa; e o que era nominativo passa para ablativo. Ex.: Os
praticantes do tesouro vão ser oficiais de descarga da alfândega. Os altos
funcionários passam a pedir assinatura de porta
CAPÍTULO
V
DO ABLATIVO
O modo com que alguma coisa se faz põe-se: Só com empenhos se obtêm empregos. Com espetáculos no Teatro Lírico é
que o Ginásio há de levantar cabeça. Com esperanças no futuro é que muita gente
se mete em especulações.
A causa por que alguma coisa se faz põe-se
O instrumento com que alguma coisa se faz, põe-se
O tempo em que alguma coisa sucede, põe-se
O espaço de tempo, que alguma coisa dura, põe-se
A coisa em que alguém excede a outro, põe-se
O preço por que alguma coisa se compra, ou vende, põe-se
O princípio ou parte donde alguma ação procede, põe-se
A matéria de que alguma coisa se faz põe-se
O lugar onde alguém está, ou onde alguma coisa sucede, põe-se
O lugar donde alguém sai, ou vem, põe-se
O lugar por onde alguém vai, ou passa,
põe-se
A distância de um lugar a outro põe-se
FIM
PASSEIO
PÚBLICO
28 DE SETEMBRO DE 1862.
Ilmo. Sr. F. I. Alho.
Li com avidez a polêmica sustentada por V. S. contra o meu procurador
o Sr. Punch.
Os prelos do Jornal do Comércio gemeram
durante oito longos dias, emudecendo, por fim, sem que luzisse no espírito
público a chispa da verdade nem assim (suponha que estou com o dedo polegar
encostado à última falange do dedo mínimo).
Houve muita verbiagem, muita faúlha de sua parte; mas argumento
de polpa, razão de convencer, nichts.
Quos vult perdere
Jupiter dementat
V. S. correu daqui para ali sobre o assunto, com a vivacidade e
graça que todos lhe reconhecem, mas nem por isso conseguiu vencer, nem mesmo
convencer.
Entre outras coisas alegou em um dos seus comunicados
“documentos de desinteresse exibidos nos reparos do Passeio”.
Hein? Creio que não li bem. Onde estão esses documentos? Quando
fez esses reparos desinteressadamente?
As obras rezadas no contrato de 1.° de dezembro de 1860 foram
orçadas em oitenta contos. Os oitenta contos foram pagos à boca do cofre. Até
aqui não houve — desinteresse.
As que não estavam mencionadas no contrato foram pagas à parte,
assim: a ponte de ferro, os seis pedestais para as estátuas e o repuxo. Também
não houve desinteresse.
Ainda mais: V. S. não prescindiu da subvenção estipulada na
condição 7ª do contrato e começou a percebê-la desde o dia 27 de janeiro do corrente ano.
Esta subvenção é de 833$333 mensais.
Isto significa que, antes da
abertura do Passeio, V. S. teve para conservação de uma coisa que ninguém
estragava o magro auxílio de seis contos cento e onze mil e tantos réis
(6:111$000).
Quem sabe se não é isto o que mereceu o nome de desinteresse?
O Sr. F. I. Alho sempre foi homem espirituoso!
Abaixo transcrevo alguns documentos do seu desinteresse,
colhidos no expediente do Ministério da Agricultura.
“Ao Ministério da Fazenda, para que expeça as precisas ordens, a
fim de que no tesouro nacional seja paga a Francisco José Fialho a subvenção
estipulada na condição 7ª do contrato de 1.° de dezembro de contar do dia
27 de janeiro do corrente ano em que o Passeio Público foi dado por pronto,
embora tenha ele de ser franqueado somente no dia 7 de setembro próximo
vindouro, levando-se essas despesas às verbas a que se refere o § 51 do art.
2.° da lei do orçamento do exercício de
“— Ao mesmo, para ordenar que ao empresário das obras de
restauração e conservação do Passeio Público desta corte, Francisco José
Fialho, seja paga pela verba a que se refere o § 55 do art. 2.° da lei do
orçamento a quantia
de 5:550$000, proveniente de diversas obras acrescidas, e que não foram
incluídas no contrato celebrado em 1.° de dezembro de 1860, sendo 3:500$000
pela construção de uma ponte de ferro em substituição de uma de madeira,
1:800$000 pela de seis pedestais para as estátuas e 250$000 pela de um repuxo.
“— Ao mesmo, comunicando que o governo, concordando com sua
informação constante do ofício da mesma inspetoria de 4 de fevereiro próximo
passado, relativo à abertura do Passeio à concorrência do público se expedem
nesta data ao tesouro nacional as precisas ordens para que Francisco José
Fialho, empresário das respectivas obras de conservação e reparação, comece a
perceber a subvenção estipulada na condição 7ª do seu contrato desde o dia 29 de
janeiro do corrente ano, em que o dito Passeio foi dado por pronto “.
Dr. Semana.
CARRAPATOS
POLÍTICOS
Escrever a crônica dos insetos parece uma das missões mais
difíceis a que se pode propor um homem, que, pelo menos, tem consciência de
nunca ter sido
inseto.
Compreendem todos que, sem ter passado pelas provas da
experiência, é muito raro dizer coisa com coisa a respeito
do que apenas se vê em outros que não são da nossa espécie. Difficile rem postulasti.
Há insetos que merecem particular menção, mesmo quando a atenção
humana se aplica a outras coisas mais graves e mais sérias. A insectologia não
é uma ciência inútil e despida de interesse; pelo contrário, prima entre os
demais ramos da zoologia, porque se ocupa apenas com seres tão diminutos e
microscópicos que nos obrigam a dar de mão a todos quantos mastodontes nos apresentam diante dos olhos, só para fazer
dos bichinhos um estudo especial.
Vê-se perfeitamente que Deus, depois de formado o grandioso da
Criação, quis também mostrar a sua divina perfeição dando vida aos átomos da
matéria. É grandeza descer até os insetos!
O inseto não é uma excrescência na vida do Cosmos, é uma verdade
da harmonia estabelecida pela mão de Deus. Perguntai ao inseto por que existe.
Dar-vos-á ele: — Porque existe o homem.
Era preciso o contrabalanço nos seres surgidos do caos. O
elefante erguia a tromba, o condor esvoaçava entre as nuvens, a baleia
chafarizava nos mares, a boa constritor desenrolava-se nas estradas. O inseto
tornava-se uma necessidade. Entre as miríadas de insetos, que volteiam nos
ares, chamejam nas ervas, escorregam pelos charcos, animalizam a atmosfera, ou
se entranham pelas carnes, distingue-se o carrapato, que, pelo seu perfume (ao
princípio asqueroso, mas depois reconhecido como muito suave e medicinal), e
pela forma chata e arredondada do seu corpo, faz-se querido e apreciado do
homem, que, se não for ingrato, deve mostrar-se reconhecido à amizade que lhe
consagra, prendendo-se-lhe ao corpo e sugando-lhe o sangue.
O característico do carrapato é agarrar-se a uma raiz de cabelo
e... esquecer-se de que deve ocupar-se de outras coisas. Ninguém sabe mais notícias
dele, e também não as dá de si. Quem o deixar sossegado pode ficar certo de que
ele não se incomoda e nem deixa a raiz do cabelo protetor.
À semelhança desses insetos, há também, no mundo social, alguns
indivíduos, que se atracam aos seus semelhantes e que fazem deles verdadeiros
mártires. Tomar-lhes conta fora a maior das loucuras, porque seria isso um pé
de cantiga para demorarem-se-nos ao cachaço mais algumas horas.
Pelos salões aparecem desses carrapatos. Quando virem um janota
de luneta ao olho, de bigode empomadado, de garras cor de rosa e de juba heliotrópada, procurando termos escolhidos,
frases de folhetim e citações de folhinha, não perguntem como se chama. É um carrapato de
salão. Pobres moças, que os sofrem!
Há velhos, desdentados, de gravata branca com o nó amarrado de
um lado, fedorentos de rapé, remelosos de um dos olhos, de sobrecasaca de gola
de veludo, e de bengalásio de cana com castão de carranca, que só falam em noivos, enxovais e força, e
arregalam o olho para uma mesa de voltarete. Esses também são carrapatos, mas
de salas de jogo. Livre-se alguém de lhes cair nas antenas.
O militar, de bigode cortadinho em roda do beiço, de gravata de
crina, e de colete de pano azul guarnecido de botões de ouro, que só conversa a
respeito das suas campanhas, cicatrizes e galinhas, é um carrapato de toda a
parte.
Qualquer padre que, longe de ir ler o breviário, anda de
sobrecasaca e voltinha, com a coroa feita na véspera e sapato de fivela: é, nas
salas de jantar e nas de engomado, um prestimoso carrapato.
O curioso sem voz, e que nunca aprendeu a cantar, que, cheio de
momos e medeixes, se atira a um piano, sem maior empenho, e canta uma noite
inteira, aborrecendo a todos os que querem conversar sobre eleições, balões,
ladrões e outras coisas dos mesmos consoantes: é um carrapato dos mais
terríveis, porque, morde, chupa o chá e aborrece.
O estadista que conta mil histórias sem
cunho de verdade, escarra pelos cantos, palita os dentes, mente e sorri com
ares de confidência, puxa o colarinho, passa a mão pela calva, endireita os
óculos, fala no Peru e na colonização, nas presidências de províncias e nas
demissões da alfândega, no déficit e no câmbio, nas flores de seu jardim e nas chuvas de setembro, nos burros do
carro e na imprensa, e por fim ronca em um braço de sofá: é um dos maiores
carrapatos da nossa sociedade.
Há milhares e milhares de outros. Ponham todos a mão na
consciência, e digam-me se não têm um tanto ou quanto de carrapatos.
A esses carrapatos todos, acima referidos, pode dar-se o nome de
— carrapatos políticos — porque são bem criados e atenciosos.
Há ainda um último carrapato, voraz e que se filia àqueles com
quem tem relações. É um
rapaz bonito, ninguém o pode negar, cheio de espírito, engraçado e
conquistador; veste com gosto, usa perfumes e tem criados de libré. É amigo do seu amigo; inimigo dos
guardas-fiscais, por causa da limpeza das ruas; censor da polícia por amor dos
ratoneiros; dedicado aos Vasques, porque é moleque; apreciador do belo sexo;
entusiasta das moças morenas e de cabelos pretos; amante das claras de olhos
azuis; bebedor de todas as taças e cheirador de todos os perfumes. Esse grande
e eminente carrapato político, porque respeita, venera e elogia as moças e as
velhas (idosas), os homens e os meninos, os ricos e os pobres, os sábios e os
não sábios, os magros e os gordos, os altos e os baixos, os bisolhos e os
caolhos, os bonitos e os feios, os ministros e os promotores (com licença do
Dr. Guanabara, por causa do estilo); é sem tirar nem pôr o Dr. Semana, quando se vê apertado e não tem matéria
para encher as suas quatro páginas de texto.
Dr. Semana.
CARTA
AO SR. CHRISTIE
8 DE FEVEREIRO DE 1863.
V. Excia., já jantou? ainda não jantou? Dúvida terrível, que me
fez vacilar na remessa desta carta, porque se já jantou é triste para mim ir
perturbar a mansa digestão de V. Excia.
Um beefsteack, e dois
ou três cálices de vinho (daquele da Tijuca) uma vez caídos no estômago querem
ser satisfeitos em paz e sossego; acomodam-se ali dentro, e enquanto o dono, se
é súdito de Sua Majestade, como V. Excia., suspira pelas margens do Tâmisa, vão
se desfazendo mansamente, e vai subindo a parte vaporosa ao cérebro... Mas aí
estou eu a ensinar o Padre Nosso ao Vigário: há de V. Excia. perdoar, mas isso
provém de fazer eu respeitar
Como talvez ainda não tenha jantado, consentirá que eu manifeste
as dolorosas impressões que me sugeriu a leitura de um artigo do Diário, onde
se anuncia a retirada de V. Excia.. V. Excia. vai partir e nos deixa. Sabe
quanto sinto? quanto sofro? ou, economicamente falando, quanto perco? Que
assunto para a imaginação caprichosa do meu desenhista era V. Excia.. E agora
que ainda está de notas para cá e para lá, como mulher que brigou e quer falar
por último, como isto não dava matéria para as minhas quatro páginas!
V. Excia. há de lembrar-se que Molière escreveu boas comédias,
não só por ser um gênio, mas por ter matéria com que enchê-las. Esta Semana Ilustrada, que é comédia hebdomadária deste
seu criado, tinha farto assunto. Alguns inimigos meus, para abater-me, chamam a
minha folha pura farsa; mas eu repilo a designação, não só por mim, como por V.
Excia., a quem fere diretamente e a quem os malévolos poderiam aplicar os
derivados, como farsola, etc..
Mas V. Excia. vai partir e isto me dói mais que tudo. Partir!
Deixar esta terra, onde V. Excia. via o céu, para onde não sabe se irá depois
de morto, e ir meter-se entre os nevoeiros de Londres! É duro, Exmo. Sr.!
O meu moleque, que é instruído, lembra-me que, partindo V.
Excia., nem assim ficaremos desprovidos de assunto, porque as personagens como
V. Excia. ficam sempre na história, e por muito que se diga mais fica por
dizer. Esta razão me consola, e praza a Deus que, sempre fiel, possa a nossa
memória reproduzir nestas páginas, como exemplo a futuros ministros, a
interessante e original verônica de V. Excia..
Aproveito a ocasião para renovar a V. Excia. os protestos de
minha mais alta consideração.
Dr. Semana.
SEMANOPATIA
NOVA MEDICINA
DESCOBERTA PELO DR. SEMANA
15 DE MARÇO DE 1863.
Irmãos universais!
A imensidade dos meus conhecimentos e as altíssimas virtudes que
me franjam cidade. Traz a bolsa vazia, mas o estomago cheio... de fome. Nem um
real na algibeira! E os acicates de Tântalo a lhe esporearem as entranhas!
A moléstia é grave, porém o remédio que passo a apontar também é
infalível.
Vem um padeiro com o seu cesto artisticamente envolto num
vistoso cobertor vermelho. O meu semelhante aproxima-se e trava com o padeiro o
seguinte diálogo:
— Quantos pães por quatro vinténs?
— Dois.
— Só dois?
— Não contando a vendagem, que se dá de graça.
— Ah! dá-se de graça. Bem; nesse caso, levo agora a vendagem,
virei amanhã buscar os dois pães e dar os quatro vinténs.
Outra receita:
A intensidade do calor, a umidade da atmosfera e muitas outras
causas fazem com que muita gente no Rio sofra das urinas.
Recipe — Quem se quiser libertar de tão horrível mal, mande-se vacinar, porque quem é
vacinado não sofre da bexiga.
Outra, contra a fome:
Recipe — Quem se quiser livrar de tal martírio, peça ao vizinho
um fole, coloque o tubo entre os dentes, feche a boca e comece a soprar, soprar
e soprar. Em menos de cinco minutos, sem ter despendido um vintém ficará de barriga cheia.
***
Última receita de hoje:
Recipe — O melhor remédio para não morrer
de febre amarela é... morrer de outra moléstia.
Dr. Semanopata.
PARTE
FORENSE
O Dr. Semana,
formado em todas as ciências, membro efetivo, correspondente e honorário de
diversas associações literárias, científicas, humanitárias, beneficentes,
artísticas e bancárias, participa ao respeitável público, que abriu, no largo
de S. Francisco de Paulo n.° 16, um escritório de advocacia, onde poderá ser
procurado, a toda e qualquer hora, menos quando estiver dormindo. Encarrega-se
de causas cíveis, crimes, comerciais e sem efeitos. Assegura resultado pronto e
rápido em todos os negócios de que se encarregar, ainda que não seja favorável
aos seus constituintes. Não é exigente, e apenas se contenta com o pagamento
adiantado. Recebe no seu escritório os bacharéis que trocam as pernas pela rua
do Ouvidor à espera do ano de prática; e prepara procuradores de causas, em
menos de oito dias, e bem assim solicitadores e mais agentes dos Juízos. Faz
requerimentos para a soltura de pretos fugidos, e para a emancipação de
africanos livres. Conhece todas as fórmulas do foro, mesmo as mais
extravagantes e absurdas, e tem, engarrafada e em barrilotes de quinto, a mais
superior chicana, não afamada pelos apreciadores, etc., etc., etc..
Outrossim, desejando o referido Dr. Semana,
ilustrar o respeitável público e dar-lhe conhecimento perfeito e claro da
prática seguida nos auditores desta corte, oferece aos numerosos assinantes
deste jornal as seguintes normas de requerimentos, que podem ser apresentados
4 DE OUTUBRO DE 1863.
1.° Modelo de requerimento
Ilmo. Sr...................... (o título da autoridade).
Diz João Faz Formas, cidadão brasileiro e bem conceituado nesta
cidade de... (o nome da cidade),
onde mora desde que nasceu, por ter nascido de seus pais FF.... (os nomes dos pais), que foram bom cidadão e boa
cidadoa, que, tendo a quitandeira F.... (o nome da
quitandeira), preta forra, e estabelecida à rua de...
(nome da rua) n.º..., vendido, para
a casa do Suplicante, uma abóbora d'água, no dia... do mês de ... de 18 ... (toda a data), aconteceu que o Suplicante mandou
preparar a referida abóbora com camarões, comprados, no mencionado dia, a F....
(o nome do peixeiro), estabelecido com
banca à praça do Mercado (se houver, ou então)
na praia de... , e por ter sobrevindo ao Suplicante, na madrugada do dia, em
que comeu a abóbora com camarões, uma forte indigestão, que quase o levou à
sepultura, entende o Suplicante que F.... e F.... (a quitandeira e o
pescador) cometeram o crime previsto no art. 192,
combinado com o art. 34 do código criminal, por isso que tentaram contra a vida
do Suplicante; e portanto
P. a V.... que, recebendo a presente queixa, que o Suplicante jura,
mande proceder à inquirição das testemunhas F.... , F...., F.... , F...., e
F...
E. R. M
João Faz Formas.
2 .° Modelo
Ilmo. Sr. Dr......... etc.
— Diz Manoel Beef Batata, cidadão naturalizado (se o for),
que, tendo há dois anos, pouco mais ou menos, comprado uma dúzia de talheres de
osso ao negociante F...., estabelecido à rua de... n.°. , sofreu, no dia de
ontem, um grave ferimento no pé, produzido pela queda de um garfo, que o
espetou, estando jantando; e, como de semelhante ferimento poderia provir morte
ao Suplicante, visto que, na opinião de diversos médicos, a gangrena ou o
tétano seriam fáceis, entende o Suplicante que o referido negociante F....
cometeu o crime previsto no art. 192, por isso que se deram as circunstâncias
do art. 16, § § 5, 8, 10, 15 combinado com o art. 34 do código criminal; e,
portanto,
P. a V... que, recebendo a presente queixa, a mande distribuir e
jurar, inquirindo depois as testemunhas F... etc. (5 testemunhas).
E. R. M.
Como procurador, Anzóis Carapuça.
3.º Modelo
Ilmo. Sr.... — Diz José de Tal, estabelecido com armazém de... à
rua de... n.°..., que, estando gravemente doente de nervos, com expressa
recomendação dos facultativos de se não alterar, visto que está impossibilitado
de ouvir todo e qualquer barulho, entrou-lhe pelo armazém F.... cidadão ... (a nação) e vendedor de toalhas e guardanapos de
linho, lenços de algodão e cambraieta, meias, etc., e, em altas vozes, começou
a mercar a sua fazenda, e a perguntar se a queriam comprar; e, como entenda o Suplicante
que o referido F.... procurou tentar contra a vida do mesmo, crime previsto no
art. 192 combinado com o 34 do código criminal,
P. a V.... . que, recebendo a presente queixa, a mande
distribuir e jurar, procedendo-se depois ao interrogatório das testemunhas
F.... F.... e F...., etc.
E. R. M.
O advogado provisionado F....
Despachos
Quando o juiz é escrupuloso, despacha o seguinte:
“D. e J., proceda-se à inquirição de testemunhas no dia... a...
horas, intimadas elas para virem depor na forma da lei, e conduzido o réu para
vir assistir a ver-se processar”.
Quando não tem papas na língua, diz:
“Não tem lugar, porque não sou médico do Hospício de Pedro II,
nem posso chamar a bolos o procurador (ou advogado
provisionado), que poucas noções de direito mostra”.
ALTAS QUESTÕES DO CRIME
DE HOMICÍDIO
Modelo n.° 1
Ilmo. Sr. Dr. Delegado de polícia de... (o lugar) — Diz João das Espertezas que tendo, no
dia de ontem, mandado chamar o Dr. Sangria (médico) para ver-lhe pessoa de sua família, que se
achava incomodada de dores de cabeça, aconteceu que o referido doutor, não
atendendo ao chamado, entrou hoje pela casa do Suplicante, quando já não era
preciso, e sem especial licença do Suplicante; e como seja tal crime previsto
pelo código criminal,
P. a V.S. que, recebendo esta queixa, a mande autuar, marcando
dia e hora para a inquirição das testemunhas F., F., e F.
E. R. M.
Como procurador, o advogado José das
Tranquibérnias.
Modelo n.° 2
Ilmo. Sr. (a autoridade).
Diz F...., que, achando-se em uma conferência secreta com o seu amigo F...., em
sua casa à rua de... (o nome da rua),
entrou-lhe, sem especial licença, seu irmão F...., indo perturbar a sua
conferência, e, como entenda o Suplicante que o referido seu irmão F....
cometeu o crime de entrada em casa alheia,
P. a V.... (o tratamento da autoridade)
que, recebendo a presente queixa, a mande distribuir (quando há mais de um escrivão) e autuar, marcando
dia e hora para o interrogatório das testemunhas F.... , F.... (
F.....
Despacho
A autoridade ordinariamente manda tais queixosos plantar batatas
e estudar direito, ainda que tragam o Corpus
Juris na algibeira.
PROCLAMAÇÃO
DO DR. SEMANA
13 DE SETEMBRO DE 1863.
Cidadãos Assinantes da Semana Ilustrada! Saúde e
felicidades. Hoje que o meu jornal começa o duodécimo trimestre, hoje que,
longe de perigos, posso levantar a fronte, porque vejo a aceitação que tenho
tido, cabe-me dirigir-vos frases de agradecimento e de admiração pela maneira
distinta e significativa com que vos tendes apresentado no meu escritório; mas,
sendo a ocasião própria para a maior franqueza, cabe-me também dizer-vos que só
a vontade de ferro dos meus progenitores, os Irmãos Fleiuss, é capaz de
sustentar esta folha, sem que até hoje se tenha dado a menor falta, por isso
que o budget da Semana oferece
em seus balanços sempre uma receita, que mal chega para despesas! Não vos
espanteis; eu me explico:
Se todos os Srs. Assinantes fossem prontos no pagamento de suas
assinaturas, se grande número de cidadãos entusiastas dos bons bocados se
animassem a procurar o meu jornal no meu escritório, e não nas casas dos
amigos, se a carne verde estivesse mais barata (apesar das estiradas
correspondências do Jornal do Comércio),
e se outros objetos de custo, como sejam pão, feijão e farinha, se vendessem
pela metade, poderia desde já afiançar que a Semana deixaria lucro,
sendo eu até capaz de diminuir o preço das assinaturas.
Mas ...
Tenho dito.
Viva a Semana Ilustrada!
Vivam os assinantes que pagam!
Viva!
O Dr. Semana.
11 DE OUTUBRO DE 1863.
Ilmos. e Exmos. Srs. — É com o maior acatamento que me
dirijo a vós, Srs. 120 deputados, para apresentar-vos o programa, que hei de
com toda a restrição seguir, durante o quatriênio em que tiverdes de
monopolizar os destinos do país.
Prometo, desde já, aprontar o lápis e a pena para acompanhar,
com toda a atenção, os importantes trabalhos da rua da Misericórdia, não me
escapando o mais pequeno incidente, digno de publicidade.
Preparai, portanto, as línguas, e eu serei convosco.
É necessário que doteis o país de leis, que, longe de molestar as algibeiras dos
particulares, possam engrandecê-los e torná-los verdadeiros habitantes de uma
nação, em cuja capital se começa a adaptar o grande melhoramento da drainage.
E.R.M.
Dr. Semana.
Carta que o Dr. Semana dirigiu a uma senhora, moradora
para as bandas da Tijuca.
Sra. D. H. — Sou muito apaixonado pelo belo sexo, e ele faz de
mim gato-sapato, mas, quando qualquer dos anjos que o compõem se torna maligno
e diabólico, esqueço todos os atributos que me encantavam, e digo-lhe verdades,
embora fique mal comigo. Desculpe, portanto, a ousadia que tomo de dirigir-lhe,
pela primeira vez (mas não última) esta cartinha. Entremos em matéria, sem mais
demora.
Acusam a V. Excia. de ser bárbara para uns pobres negrinhos e
uma moça que tem
Espero que não levará a mal a precaução, que tomo, de nada dizer
pelo meu jornal e nem publicar o seu retrato que me foi remetido e existe em meu poder.
Adeus, minha senhora, acredite que estou sempre pronto a cumprir
as suas ordens como
De V. Excia.
criado e venerador
Dr. Semana.
MANIFESTO
DO DR. SEMANA AOS ASSINANTES DO SEU JORNAL
6 DE DEZEMBRO DE 1863.
Prezadíssimos amigos e correligionários!
É sempre
com o maior prazer que pego na pena para dirigir-vos as manifestações do meu reconhecimento
e da minha gratidão. Necessito de vós, preciso da continuação de vossos bons
ofícios.
Não vos admireis, pois, que, no 156° número do meu jornal,
escreva algumas linhas mais açucaradas e melífluas, em cujas pontas
imperceptíveis anzóis estão presos para pescarem as vossas assinaturas.
Quando a Polônia sacode a poeira do absolutismo, que ameaçava
sepulta-lá, como outrora a lava sepultou Pompéia e Herculano, e mostra os
dentes podres e chumbados ao autocrata, que, por não ser cirurgião-dentista,
não compreende o gracejo e esmaga-a com a unha do dedo grande do pé esquerdo;
quando Roma, ajoelhada às plantas biliáceas do Santo Padre, maldiz Antonelli,
jejua, bate nos peitos e espingardeia os soldados franceses, que tomam banho
nos rios, porque lhes faltam banheiros como os do Bom Jesus e do Hotel Ravot;
quando a Inglaterra vê, de braços cruzados, uma Vitória cair de outra vitória, enquanto Sir Christie, em asmáticos
acessos de melancolia diplomática, enche as escarradeiras do seu bed-chamber para despejá-las no pacífico
do Brasil, que o deixou partir com a mesma derme nasal, que trouxera da velha
Albion; quando a Espanha estremece de júbilo ao ver passar a ex-Tebana ao lado
direito de Isabel, enquanto milhares de Castelhanos expõem a vida e na Praia
das Frechas; quando a França empomada e estica o bigode, e parodia para todos
os lados do globo a frase de Cambronne:
É sempre grato, para o coração bem formado, dizer aos amigos, que são amigos, um
adeus de despedida, já que, por uma infelicidade inexplicável ou por um
caiporismo sem significação, a Semana Ilustrada não
pode mais continuar ... no 3.° ano, e vê-se forçada a começar o 13.° trimestre
ou 4.° ano!
O que fazer, Prezadíssimos amigos e
correligionários? Seguir o destino, e deixar que o meu jornal corra a brilhante
carreira, que lhe está traçada por entre flores, pérolas e perfumes.
Assim, portanto, participo-vos que a Semana Ilustrada vai entrar no
seu 4.° ano de existência, e, por tão justo motivo, ao deixar o 12.° trimestre,
mando celebrar um solene Te-Deum na igreja de S. Francisco
de Paula.
Prometo, desde o n.° 157 até o n.° 208, escrever a favor do
comércio, da indústria da agricultura, da política, das artes, das ciências,
das letras, das tretas, das ruas, das praças, dos becos, dos largos, dos
fiscais, dos teatros, das câmaras municipais, dos permanentes, da armada, do
exército, das finanças, dos veículos, do asseio público, da polícia, do clero,
do povo, dos advogados, dos médicos, das parteiras, dos senadores, dos
deputados, dos alfaiates, das camiseiras, das irmandades, dos jornalistas, dos
colégios (em geral), dos capitalistas, dos banqueiros, dos proprietários, da
guarda nacional, dos carniceiros, dos solicitadores, dos engenheiros, dos
construtores, dos estaleiros, dos náuticos, dos homeopatas, das casas de saúde,
dos dentistas, dos pedicuros, dos veterinários, dos boticários, dos
taquígrafos, dos pintores, dos estatuários, dos professores de línguas, das
bordadeiras, dos esgrimidores, dos ginásticos, dos músicos, dos afinadores, dos
organistas, dos arquitetos, dos guarda-livros, dos agentes, dos contadores, dos
negociantes, dos consignatários, dos mercadores, dos livreiros, dos aferidores,
dos ourives, dos cerieiros, dos chapeleiros, dos charuteiros, dos bengaleiros,
dos coristas, dos droguistas, dos curtidores, dos fruteiros, dos cerniceiros,
dos armadores, dos lojistas, dos ferragistas, dos gravadores, dos marmoristas,
dos fogueteiros, dos louceiros, das modistas, dos cabeleireiros, dos barbeiros,
dos tabaqueiros, dos arrieiros, dos sementeiros, dos cutileiros, dos
tintureiros, dos lapidários, dos cambistas, dos rebatedores, dos leiloeiros,
dos despachantes, das floristas, dos trapicheiros, dos cocheiros, dos carros,
dos tílburis, dos carroceiros, dos bauleiros, dos banheiros, dos belquiores,
dos galvanistas, dos botiquineiros, dos calafates, dos pedreiros, dos
caldeireiros, dos carpinteiros, dos colchoeiros, dos confeiteiros, dos
corrieiros, dos amoladores, dos fotógrafos, dos douradores, dos empalhadores,
dos azeiteiros, dos empresários, dos encadernadores, dos engarrafadores de
vinhos, dos esculpidores, dos espelheiros, dos esmaltadores, dos
espingardeiros, dos asfaltadores, dos queroseneiros, dos seleiros, das
lavadeiras e engomadeiras, dos funileiros, dos maquinistas, das coleteiras, dos
marceneiros, dos rolheiros, dos sebeiros, dos vinagreiros, dos foleiros, dos
joalheiros, dos ferreiros, dos sineiros, dos picheleiros, dos gaioleiros, dos
pasteleiros, dos hoteleiros, dos lampistas, dos litógrafos, dos bombeiros, dos
canteiros, dos oleiros, dos padeiros, dos cenógrafos, dos relojoeiros, dos
salsicheiros, dos serralheiros, dos urubus, dos tamanqueiros, dos tanoeiros,
dos torneiros, dos vidraceiros, dos violeiros, dos pedestres, e mais entidades,
que se oferecerem à minha pena.
O meu programa cifra-se na seguinte frase de um grande
estadista: — Justiça a todos e favor ao meu moleque.
Dixit.
Dr. Semana.
CIRCULAR
AOS MUITO ILUSTRES ASSINANTES DA SEMANA ILUSTRADA
Digitus Dei est hic.
Preclarrísimos
senhores assinantes.
Já
que Deus permitiu que a quarta idade
Começasse
o jornal, que esta cidade
Por Semana conhece; já que o povo
Veio
em chusma dizer que o ano novo
Desejava
assinar, pois que é notório
Ser
eu, em todo o mundo — papelório,
Exato
cumpridor dos meus deveres;
Alço
a fronte, me esqueço dos prazeres,
P'ra
vir aqui dizer que o quarto ano
Será
dos outros todos soberano.
Sim,
a c'rôa terá — seu nascimento
É saudado na
véspera do abrimento
Das
sessões dos preparos p'ra o fabrico
Das
leis do salvatério! — Ano tão rico
Jamais
sobre as cabeças brasileiras
Pairará
ensopado em frioleiras!
De
palestra oito meses — leis, decretos,
Moções,
requerimentos, mil projetos,
E
no fim — liberais, conservadores,
Vermelhos,
amarelos, de mil cores,
Para
a terra natal voltando, aflitos
Das
lutas, que tiveram — dos conflitos
Por
causa das patentes, das comendas,
Das
cartas de vigários, das prebendas,
Que
o povo eleitoral, antes do pleito,
Com
os olhos p'ra urna e a mão no peito,
Às
dezenas prometem — a pátria julgam
Bem
salva pelas leis que não promulgam!
Salve
o ano feliz, que em doze meses
Verá
sair cinqüenta e duas vezes
A Semana Ilustrada! Salve o ano
No
qual toda a gente um grande cano
Terá
p’ra não morrer mais afogada!...
Sobre
o ano feliz, em que a boiada ...
Mas
que digo? — convém que hoje repita
Tanta
coisa sublime, tanta dita,
Que
imortal tornará o quarto ano
Da Semana Ilustrada? — Sou humano,
Tenho
pena de vós, bons assinantes,
E,
portanto, calado, quero antes
À
vossa perspicácia entregar puros
Da
pátria e da Semana os dois futuros.
Refleti,
ainda é tempo. — A flor não morre
Se
vida o sol lhe dá — se aragem corre.
Necessito
de vós, pois sois o espeque,
Que
escora o meu jornal e o meu moleque.
Vossos
nomes mandai, vossa morada,
Que
o Almanak tereis — se não...
mais nada.
Que
mais posso pedir?... apenas lembro
Que
estamos 'no começo de dezembro.
Dr. Semana.
NOVIDADE
17 DE JANEIRO DE 1864.
Humanitário, como deve ser todo aquele que se dedica aos seus
semelhantes, não posso deixar de publicar a seguinte carta, recebida de um dos meus
assinantes de Niterói. Tenho sempre prazer quando transcrevo destas e doutras
publicações, mandadas por tão bons pagantes. Não declaro o nome do meu amigo,
porque S.S., ou por modéstia para livrar-se de elogios, ou por uma timidez
indesculpável, pediu-me positivamente que o suprimisse.
“Meu bom amigo Dr. Semana. — Praia Grande, 12 de Janeiro de
1864. — Desejo que V. Excia. tenha gozado
etc........................................
................................................................................................................
“Vou pedir a V. Excia. um grande obséquio e estou convencido de
que não deixará de servir-me. Ei-lo:
“Pode publicar, na sua conceituada e mais que lida e procurada
folha, que o remédio, inventado ou descoberto pelo ilustrado e enciclopédico
Dr. Francisco Gomes de Freitas, à rua da Carioca n.° 118, para curar as sobreditas ou meninas, é um dos
maiores porretes para tais enfermidades. Sim, sim, e três vezes sim!!! Se a
caparrosa verde pode as uvas curar e o bicho matar, sem mais nada restar, por
analogia se deve apostar que a choux-fleur,
tão apreciada pelos médicos, com a bisnaga deve murchar.
“Os invejosos e todos os que, capazes de negar até a sua
deliciosa mãe são, fingem nos remédios do ilustrado Dr. Freitas não acreditar,
mas, desde no campo de Ourique de Cristo a aparição até hoje, ainda um ente tão
humanitário e universal não se pode encontrar. Não, não e não!!
“A bisnaga* (que ninguém podia acreditar e para
remédio usar) é um dos específicos mais poderosos para quem com dores de cabeça
gritar e vontade tiver de flatos deitar, ou da sala para a cozinha andar. Basta
nos bolsos das calças botar, ou no pescoço pendurar. Tenho um vizinho, mais
para baixo do que para cima, que era mártir nas ocasiões de luas (o Dr. Freitas
terá a bondade de confessar, ou estudar, se ainda reparo não fez, que os
ataques nessas ocasiões mais fortes são). Pois, meu senhor, a bisnaga, que ao
Dr. Freitas foi implorar, fez-lhe o grande milagre de, para sempre, em três
horas, o curar. Minha tia, que nasceu onde o corpo de meu saudoso avô jaz, que
das sobreditas faleceu, porque a
bisnaga não era conhecida, o remédio empregou, e já pimentas e pimentas provou,
e carne cozida com abóbora e repolho e paios jantou, e os incômodos costumados
não experimentou. Eu, tendo a tantos curativos assistido, muitas bisnagas nos
bolsos trazer entendi, e hoje, graças ao ilustrado e humanitário Dr. Freitas,
trago as tais flores secas nos bolsos das calças, dos coletes, das casacas e
até no bolsinho do relógio.
“Glória, glória ao único homem, que os seus negócios comerciais
e honestos esquece, e em cima dos livros fenece, quando a humanidade padece e
dele carece!! Possa a fama o nome de tão distinto filantropo nas páginas da
nossa história e da de Portugal gravar, e a par das bisnagas e da caparrosa
(descobertas suas), uma estátua em todos os intestinos levantar, já que
qualquer bom vinho pode provar, e os emolientes desamparar. Esse homem é o
irmão universal de toda a geração atual, e, por conseqüência, tio de toda a que
há de vir.
“ Adeus, Exmo., mande suas ordens a quem é com respeito
“De V. Excia. etc.”
À vista do testemunho do amável Niteroiense, convido os meus
leitores para que se munam de bisnagas na rua de S. Pedro, defronte da casa do
falecido Sr. João Pedro da Veiga.
Ainda não experimentei esse remédio, porque (felizmente sou como
as minhas leitoras) não sofro desse mal; porém não posso deixar de confessar
que esta gente da corte inventam coisas que
fazem abrir a boca. O Sr. Dr. Francisco Gomes de Freitas é uma pessoa sisuda e
digna de ser acreditada, e S.S. nos assevera que a sua bisnaga é um poderoso
reagente contra as moléstias subterrâneas.
Dr. Semana.
CARTA
DO DR. SEMANA AO FILÓSOFO HERMOTIMO
7 DE FEVEREIRO DE 1864.
Senhor. — Quis arvorar a Semana Ilustrada em comício popular com o fim de instituir debate sobre a proposta de colocar a
preguiça à destra da Minerva em substituição do noturno guinchador.
Neste sentido dei alamiré à minha formosa legião de
colaboradores.
Estes, porém, com a sinceridade, que nunca vi desmentirem, e
como se tivessem passado parla entre si, acabam de me responder, que votam
contra a substituição, visto como lhes parece tirania desempoleirar a coruja,
há tantos mil anos símbolo da meditação, para enobrecer o quadrúpede peludo,
emblema permanente da indolência, antítese da atividade, contraste da energia,
qualificativas de nossos numerosos escritores, em cujas línguas todos os dias
baixam as de fogo, que deram aos apóstolos o privilégio de evangelizar e
persuadir com inimitável facúndia.
Vê, portanto, Sr. Hermotimo, que a sua proposta nasceu para
morrer.
Rose ... elle a vécu ce que vivent les roses:
L'espace d'un matin.
Competia-me presidir o comício.
A presidência vedava-me pronunciar-me, assim a favor como
contra.
Entretanto, lembrando-me dos serviços, que prestou durante a sua
peregrinação por todos os mundos sem excetuar o da lua, eu já tinha preparado o
moleque para recitar um discurso de arromba, superior a qualquer dos de
Demóstenes contra Felipe ou dos de Cícero contra Verres e Catilina.
O moleque havia de brilhar como tem brilhado muitos oradores
negativos, incapazes até de ligar uma idéia.
Isto aqui entre nós, que ninguém ouça.
O moleque daria pancas, porque este meu núbio tem decidida queda
para tudo quanto destaca perfume de generosidade e é fora do comum.
O traquinas é das Arábias. Se o não contivesse, ia longe. Acho-o
com disposição até de revolucionar-me a Semana,
de pôr tudo em polvorosa.
Estou do lado da proposta. Simpatizo com ela.
Há nesta terra da Santa Cruz talentos a granel, inspirações por
dá cá aquela palha, habilidade a mãos cheias.
Mas também há vaidade por aí além.
Qualquer rapazote, ledor de romances da terra, julga-se o
Hércules da literatura, vencedor de trabalhos, cada qual pelo menos igual aos
doze daquele semi-deus, e como ele, bipartindo a pedregosa garganta do
Mediterrâneo, escreve nas colunas improvisadas — non plus ultra.
Está tudo feito. Daí por diante, esse privilegiado vai caminho
de Canaã. Apanha chuva de maná muito melhor que a de arroz.
Pobre rapaziada de talento!
Fica estacionária, vive das tradições de ontem, como se fossem
de séculos passados; e, quando sobem à pira, não é porque a túnica do centauro os
desespera, é porque a glória já os tem cansado na safra de louros virentes.
Mas que quer que lhe faça, Sr. Hermotimo?
Não posso, nem devo encontrar os desejos da minha esplêndida
falange.
Ela faz guerra à preguiça quadrúpede.
Eu não posso deixar de gritar com toda a força dos pulmões: —
Morra a preguiça! embora a manhosa nem uma só polegada desça do pau.
O Sr., enquanto em corpo andou cá por este vale de cardos e
carrapichos, fez das suas, parecia medium endiabrado. Mistificou a meio mundo.
Agora, em espírito, vaga lá por esses orbes luminosos. Deu
muitas nos cravos, leve por tanto uma na ferradura, que ainda não é desforra.
A cabeças, como a sua, não faz mossa um coque, dado que seja com
a clava de Alcides.
Não dê cavaco com a rejeição da proposta.
Resigne-se. Console-se com o mal das vinhas, contra a milagrosa bisnaga, ao qual principiam alguns ingratos e ingratas a
fazer oposição.
Deixe a feia coruja continuar nas funções de caudatária de
Minerva.
Reserve-se para melhor maré.
Com isso pouco perde e muito ganha.
O seu amigo e colega reverenciador
Dr. Semana.
BERNARDICES
14 DE FEVEREIRO DE 1864.
Infelizmente até hoje, apesar de terem sido publicados 165
números da Semana Ilustrada, há algumas pessoas
neste nosso belo Rio de Janeiro que ainda não entenderam o pensamento que
preside à marcha deste jornal.
A Semana Ilustrada não pretende
ofender pessoa alguma, nem matar interesses e lucros alheios. É um jornal
puramente humorístico, que até agora tem sabido guardar imparcialidade,
preferindo proteger a atacar qualquer empresa, associação ou negociação
particular.
Alguns gaiatos, talvez com a idéia de guerrear a Semana, espalharam que o último número atacara a
empresa dos bailes mascarados do Teatro Lírico, para fazer-lhe mal,
distrair-lhe a concorrência, e assim vingar-se não sei de que parvoíce. Ora,
pelo amor de Deus! É
preciso não conhecer a Semana Ilustrada!
Saibam, portanto, todos que sou amigo de um dos arrematantes
desses bailes; que o tópico do artigo, que se diz ser contrário aos ditos
bailes, foi escrito pelo Menino Diabo, que apenas pretendeu pregar um susto de
Carnaval, tanto aos empresários como aos máscaras; que, finalmente, de cabeça
bem alta, posso dizer, Urbi et Orbi,
que nunca pretendi, não pretendo e não hei de pretender arrematar os bailes
mascarados do Teatro Lírico. Não apareçam, portanto, apoplexias de medo.
É necessário que os meus leitores vejam sempre a Semana com os melhores olhos deste mundo,
e que a entendam como deve ser entendida, e não como meia dúzia de crianças a
quer por aí soletrar.
Estou superior a todas essas intriguinhas, mas não desejo que
amigos meus se possam ofender, acreditando que sou capaz de molestar o menor
mosquito, por inveja, ciúme, ódio, vingança ou... nem sei o quê.
Dr. Semana.
CORREIO
DA SEMANA ILUSTRADA
CARTA PRIMEIRA
27 DE MARÇO DE 1864.
Ilmo. Exmo. Sr. Dr. Chefe de Polícia. — Tratado sempre com a
maior delicadeza por V. Excia., que se torna distinto pelas suas maneiras atenciosas
para com todos os que têm a honra de conversar com V. Excia., deveria ir
pessoalmente procurá-lo para pedir-lhe um grande favor a bem da nossa
sociedade; mas os contínuos afazeres,
a que me entrego diariamente, privam-me desse prazer, e por isso lancei mão do
meio mais fácil, e rápido, de comunicação, dirigindo-lhe esta carta, que,
espero, será, cuidadosamente lida por V. Excia., a quem não falta bom senso e
moralidade para decidir o que for mais compatível com os nossos usos, costumes
e educação.
Há nesta cidade do Rio de Janeiro um estabelecimento, onde,
todas as noites, por entre baforadas de fumo e de álcool, se vê e se ouve
aquilo que nossos pais nunca viram nem ouviram, embora se diga que é um sinal
de progresso e de civilização. Chama-se esse estabelecimento — Alcazar Lírico.
Apesar de velho, não sou carranca e retrógrado, e sei aplaudir
todas as novidades que o estrangeiro nos traz, passando pela alfândega do bom
senso, ou mesmo por contrabando, contanto que tenha uma capa de moralidade; mas
quando essas novidades aparecem no mercado avariadas e cheias de água salgada,
fico indignado, pergunto aos meus botões em que país estamos, convenço-me de
que somos, na verdade, tidos por selvagens hotentotes, e imploro a Deus para
que ilumine as cabeças que nos dirigem, a fim de que apliquem o ferro em brasa,
na ferida, que começa a chagar-se pelo veneno que lhe inoculam.
Falo com esta franqueza, porque estou escrevendo a um magistrado
morigerado e honesto, cujo principal desejo é bem merecer de seus concidadãos
pelos seus atos de virtude e de rigorosa justiça.
Enquanto se proibia a todos os teatros de brasileiros —
representações nas sextas-feiras da quaresma e na véspera e
no dia de Ramos, consentia-se que o Alcazar tivesse o salão aberto para moralizar
o bom povo, que o freqüenta! Se não há injustiça neste procedimento, seja de
quem for, há pelo menos falta de equidade, que só redunda em proveito do
francês, contra os brasileiros, que vivem na maior miséria, esmolando da
concorrência dos seus teatros o pão quotidiano.
V. Excia. dignar-se-á de explicar-me como se pode dar esse
fato?
Rogo ainda a V. Excia. o especial obséquio de freqüentar essa
casa de educação, não se contentando em mandar inspetores de quarteirão e mesmo
o respectivo subdelegado. V. Excia. é um homem ilustrado, que conhece
perfeitamente a língua francesa, e não só terá belas noites de divertimento,
como fará um relevante serviço à sociedade em que vive, e onde tem milhares de
relações com todas as famílias decentes e honestas do Rio de Janeiro, as quais,
por uma infelicidade do empresário, nunca encontrará nessa Academia.
Desculpe V. Excia. a ousadia de escrever-lhe esta carta, e
permita que, d'ora em diante, lhe dirija muitas outras a respeito do meu
protegido Mr. Arnaud e do seu especial e inimitável estabelecimento.
Por agora, contento-me com os pedidos acima feitos, esperando
que não serão as minhas palavras atiradas ao vento.
Aqui me tem V. Excia. sempre pronto a cumprir as suas ordens
como quem, com todo o respeito e consideração, é
De V. Excia. amigo, afetuoso e obrigadíssimo criado
Dr. Semana.
CARTA
SEGUNDA
3 DE ABRIL DE 1864.
Ilmo. e Exmo. Sr. Conselheiro Presidente do Conservatório
Dramático. — Sou o primeiro a reconhecer que não me cabem direitos para ir importuná-lo
e distraí-lo dos seus importantes labores; mas V. Excia. que, há anos, é meu
amigo e me tem disso dado exuberantes provas, permitir-me-á o desembaraço, na
certeza de que somente as nossas íntimas relações me autorizam a dirigir-lhe
esta carta, a qual, espero, será lida com toda a atenção por V. Excia., que, na
opinião de todos os que têm a ventura de trocar falas com V. Excia., é um
cavalheiro muito distinto e extraordinariamente delicado. Releve, pois, a
ousadia, e decida, em sua sabedoria, se é possível atender ao pedido, que lhe
vou fazer.
Em primeiro lugar, tenho a dizer-lhe que sei que V. Excia. não
pertence à escola do realismo. É isto um grande argumento a meu favor.
Vamos ao pedido:
Este nosso Rio de Janeiro, Exmo., é o poço onde vêm cair todas
as caçambas vazias do estrangeiro. Para felicidade dos nossos civilizadores,
saem sempre com as tais caçambas cheias de dinheiro, e... deixam-nos com caras
indefiníveis...
Na rua da Vala existe um teatrinho, barracão ou coisa que o
valha, a que se chama Alcazar Lírico. Creio que V. Excia. não o freqüenta. É pena.
Nesse estabelecimento, fuma-se, bebe-se, espirra-se, assobia-se,
grita-se, berra-se, canta-se, dança-se, representa-se, e... mais nada, creio
eu. Já vê V. Excia. que é um divertimento de mão cheia.
A V. Excia. não cabe indagar quem lá vai, nem os inconvenientes
que podem provir à moralização do nosso povo, da existência de semelhante
colégio de bons costumes; mas, como presidente do Conservatório Dramático,
pertence-lhe inspecionar se tudo quanto por lá se diz está permitido e
licenciado pela censura.
Se nossos venerandos pais, Exmo., fossem vivos,
horrorizar-se-iam ao saber do grande adiantamento, que vai tendo a nossa boa e
sofredora sociedade fluminense com a representação das mais inocentes, puras e
espirituosas produções dos teatrinhos parisienses. Infelizmente somos nós os
vivos, e, graças aos bons desejos de civilização e de progresso, vamos
assistindo, com ouvidos de mercadores, a todas essas gentilezas, importadas do
velho mundo que tantas lições de moral e de educação nos tem dado, mercê de
Deus!
O espírito, que por lá se repete, é tão grande, o sainete da
frase é tão doce, e o gesto tão adequado, que, segundo creio, há mão alheia
aperfeiçoando as plantas traçadas pelo Conservatório. Veja bem V. Excia. que
isto não passa de simples suposição minha. Deus me defenda de dizer que é uma
verdade.
0
Peço, portanto, a V. Excia., como supremo fiscal dos nossos teatros,
que se digne, de quando em vez, de freqüentar esse santuário da moral. V.
Excia. não faz esse obséquio unicamente a mim, falo-o principalmente a todas as
famílias honestas e decentes do Rio de Janeiro, que não podem ver um
divertimento na corte, donde mal entendidos prejuízos e censuráveis
preconceitos as afastam, proibindo-lhes a entrada.
Sou o primeiro a estimar que existam muitos estabelecimentos
destes; mas não me acomodo com a idéia de que não vão a eles todas as classes
da sociedade. Será o culpado disso o Conservatório Dramático?
Creio intimamente que não, porque é composto de pessoas bastante
ilustradas, que só licenciam composições dignas de serem recitadas nos mais
finos e aristocráticos salões. Acho que é esquisitice dos nossos pais de família.
Desculpe V. Excia. o meu pedido, filho somente do desejo que
tenho de proteger o meu simpático Mr. Arnaud e o seu inimitável e especial
estabelecimento.
Continuarei a importuná-lo com outras missivas, contentando-me,
por ora, com o que acima fica dito.
Julgo desnecessário dizer-lhe que da polícia espero tudo, e por
isso vou escrever mais algumas linhas ao meu respeitável amigo o Exmo. Sr. Dr.
chefe de polícia.
Aqui me tem V. Excia. sempre às ordens, com a melhor vontade,
porque sou, pedida a necessária vênia, com o maior respeito e consideração,
De V. Excia. afetuoso amigo e obrigadíssimo criado
Dr. Semana.
CARTA
TERCEIRA
10 DE ABRIL DE 1864.
Ilmo. e Exmo. Sr. Dr. Chefe de Polícia. — Apesar talvez de incomodá-lo
com as minhas cartas, não posso deixar de pegar na pena, para escrever-lhe esta
segunda missiva, a favor do bem conceituado e decente estabelecimento do meu
simpático Mr. Arnaud, que se negou a consentir que Mlle. Risette cantasse no
benefício de uma pobre escrava brasileira.
Mas voltemos ao Alcazar. As famílias honestas do Rio de Janeiro
continuam a esperar de V. Excia. a extinção dessa casa de educação. Conheço um
ilustre deputado que pretende apresentar na câmara um requerimento pedindo informações
a respeito da utilidade desse estabelecimento.
Repare V. Excia. que é o único divertimento (menos praças de
touros) a que se assiste com o chapéu na cabeça, com o charuto na boca, a
garrafa de cerveja ao lado, e uma, duas ou três raparigas, lindas como os
amores, sentadinhas em derredor da mesa. Que prazer! Que glória! Não falte,
Exmo., porque há de apreciar muita coisa interessante.
V. Excia. que é tão bom, tão amável e tão atencioso para comigo,
não há de deixar de satisfazer um pedido meu — Vá ao Alcazar!
Continuarei a incomodá-lo, por causa do meu Mr. Arnaud,
esperando que V. Excia. tomará, no valor, que merecerem, estas missivas.
Sou, com estima e respeito,
De V. Excia.
Amigo afetuoso e obrigadíssimo criado
Dr. Semana.
SARAU
LITERÁRIO
10 DE ABRIL DE 1864.
Ainda bem! Não há nada a dizer-se contra a semana. Ela
foi verdadeiramente ilustrada por uma dessas
festas íntimas que deixam sempre saudades.
A convite do Sr. conselheiro José Feliciano de Castilho,
reuniram-se nos belos salões do Club Fluminense vários cavalheiros. Políticos,
literatos, comerciantes, isto é, clero, nobreza e povo, tudo lá se achou
representado. E os três estados funcionaram na melhor harmonia possível até 1
hora da noite.
E querem saber os leitores o motivo dessa reunião
extraordinária? É simples. Tratava-se de fazes as despedidas a um homem de letras, o Sr. Dr. João
Cardoso de Menezes Souza.
Ora, o motivo serviu esta vez de pretexto. E os convidados, os
que faziam parte do batalhão literário, recitaram várias composições prosaicas
ou poéticas, conforme a índole de cada um.
O moleque da Semana é
doido por estas festas. Se não é assíduo à sala da recitação, não abandona a
corte da sala do chá. Guloso como um verdadeiro moleque, prefere os bolinhos às
poesias e o pão com manteiga à melhor prosa do mundo.
Contudo, fez-me uma revelação que não deixarei de comunicá-la,
mesmo porque não guardo segredos de moleque.
— Por que não se hão de regularizar estes saraus, meu nhonhô,
perguntou-me ele, e por que não convidar ao belo sexo para infundir o gosto da
literatura às nossas belas patrícias?
O moleque é um tanto desembaraçado, e fala das nossas patrícias
como se fossem crioulas.
Seriamente não tive o que responder-lhe. E apesar de não esperar
do meu moleque senão alguma boa molecagem, confesso que me pareceu mais a sua
reflexão uma boa idéia.
A ela, pois, homens de letras: moços e velhos; o estimulo do
sexo encantador faz homens e cria saraus.
Dr. Semana.
17 DE ABRIL DE 1864.
Ilmo. e Exmo. Sr. Conselheiro Presidente do Conservatório
Dramático. — V. Excia. tem-se mostrado sempre tão benévolo para comigo que,
espero, deve ter tomado sérias providências a respeito da última carta, que lhe
escrevi, recomendando-lhe o meu simpático Mr. Arnaud, e o seu especial e
inocente estabelecimento.
Creio que V. Excia. nunca foi ao Alcazar, mas uma vez é a
primeira, e não só eu, como todos os meus amáveis leitores, muito desejamos que
V. Excia. freqüente aquela casa de caridade.
Não sei o que se exige para que uma peça seja licenciada; mas a
ver pelo que lá se representa, penso que tudo é lícito e admitido. É essa a
opinião de V. Excia.?
O Alcazar não é unicamente um ponto de reunião, é também uma
escola de costumes, e por isso o bom senso e a maior parte das famílias do Rio
de Janeiro muito desejam que V. Excia., esquecendo, por alguns momentos, os
seus grandes trabalhos noturnos, se dedique com assiduidade às mezinhas do
Alcazar. V. Excia., que é em verdade filantropo, não deixará de condescender
com o pedido deste seu velho amigo, que só deseja que V. Excia. mostre quanto é
solicito em atender a uma pequena rogadella,
filha dos desejos que nutro de ver nesta nossa terra alguma coisa que não seja
de maus perfumes, trazidos pelo meu amigo francês da rua da Vala.
Adeus, Conselheiro; vá ao Alcazar e disponha como sempre de quem é com respeito
De V. Excia.
Amigo afetuoso e obrigadíssimo criado
Dr. Semana.
CARTA
DO DR. SEMANA AO IMPERADOR DA CHINA
CALENDAS DE ABRIL DE 1864.
Celestial Senhor. — Pretendia escrever a Vossa Obesidade na linguagem
de Confúcio, visto como sou poliglota superior a Pico de
V. O. deve de saber que, em questões de línguas, nada tenho de
invejar às charqueada do Rio Grande do Sul.
Gorou-me, porém, o desejo a falta de tipos chineses neste
império de terrícolas, aonde há multiplicidade de outros tipos; e é por isso
que escrevo a V. O. no idioma português, ainda hoje falado pelos gafanos da Goa
luso-chinesa.
O objeto da minha missiva, muito nobre descendente de Houang-ti,
é comunicar a V. O. que muitos dos mandarins do Celestial Império ocupam-se por
aqui em vender camalô e salinha em menoscabo da prosápia de que procedem e
da importância política da sua nacionalidade.
Feita esta comunicação pelo meu correio dos mares dos tufões,
espero em resposta ver, dentro deste ano da graça de 1864, arfar pela baía de
Niterói uma invencível armada de juncos comandada pelo mais hábil Nelson de V.
O para restituir aos lares celestiais os mandarins degenerados e obrigá-los
assim a voltar às delícias da canga e do empalamento.
Sinto privar da presença de tão ilustres hóspedes a terra, que
me viu nascer; mas não lhe vejo melhor gesto; sou cosmopolita em matéria de
dignidade, e não pertenço à legião dos otimistas que enxergam nos silvícolas, além
da qualidade de nobres, que eu tanto aprecio, os autores do grande melhoramento
no carrego e pregão do peixe cru.
Atendei, Celestial Senhor, à minha comunicação; vede que nela
vai o interesse de vossos domínios no tocante ao ópio e ao chá Lipton, tão
grato a vossos aliados do gabinete de S. James.
Não deixeis, grande Chaça, apodrecer nos cortiços do Rio de
Janeiro os vossos desertados fidalgos. Cangai-os de novo, ínclito, egrégio e magnânimo
corifeu dos salamalecos: cangai-os e contai com os serviços e préstimos do
humanitário e utilitário instituto da Semana Ilustrada, que desde já toma a peito tratar a China no pé das nações mais favorecidas.
De V. O. admirador profundo,
Dr. Semana.
17 de abril de 1864.
NOVIDADES
DA SEMANA
24 DE ABRIL DE 1864.
O único meio que resta ao cronista de novidades, quando se acha
em frente de uma semana estéril, é dizer francamente a verdade a seus leitores.
Entretanto, não podemos nós assim lavrar peremptoriamente uma
sentença tão pesada contra os 7 dias que acabam de decorrer.
Graves sucessos foram neles anunciados e, em todo o caso, se não
dão assunto para a galhofa, prestam-se, Deus o sabe, a movimentos expansivos de
outra natureza.
Já não é segredo para ninguém. Está determinada a embaixada
especial para o Rio da Prata. O ministro feliz não é o Dr. Semana, nem o
redator da Gazetilha do Jornal do Comércio,
é o Sr. deputado José Antonio Saraiva, que leva por secretário especialíssimo o
talentoso Sr. Dr. Tavares Bastos, que vai representar o Amazonas sobre as águas
do Rio da Prata. A missão é de paz.
Começaram já os trabalhos da augusta salinha. Os deputados
provinciais preparam-se para afiar a língua na pedra do orçamento provincial,
sobre a qual pedra deve ser levantada a igrejinha da felicidade pública.
Como se vê, é um negócio simples, e que não há de cansar muito
aos digníssimos representantes de serra abaixo e serra acima.
Houve pelos domínios da polícia uma balbúrdia dos nossos
pecados. Foi um negócio complicado e cheio de peripécias tais a assombrar os
próprios atores de S. Pedro, que estão agora representando ao vivo as aventuras
e descobertas de Cristóvão Colombo.
Foi o caso que um marido enciumado, e que não está decididamente
pelo divórcio dos casais, homem do seu ofício, pegou no formão, como no seu
malhete simbólico, e sobre a cabeça da sua cara metade tanto bateu e martelou,
que lhe introduziu nos miolos a sua crença inabalável de que o marido é sempre
marido, mesmo quando a esposa não quer mais ser esposa.
Como este assunto, porém, está afeito aos tribunais, o Dr.
Semana, que não é advogado que se inculque, só voltará a tratar dele quando se
pronuncie a sentença.
Dr. Semana.
CORREIO
DA SEMANA ILUSTRADA
CARTA QUINTA
1º DE MAIO DE 1864.
Ilmo. e Exmo. Sr. Dr. Chefe de Polícia. — V. Excia. há de ter
indubitavelmente reparado no meu silêncio a respeito do Alcazar, pois acredite
que é bem contra a minha vontade.
Fui a Petrópolis, e deixei o meu moleque encarregado de redigir
a Semana, mas como não o autorizasse a
dirigir-se a V. Excia., não se animou ele a escrever a continuação dos meus
pedidos. Fez bem; porque sendo V. Excia. um cavalheiro tão distinto e digno da
maior consideração, não desejaria eu que o meu moleque tivesse a ousadia de ir
perturbar a V. Excia. nos seus sérios e importantes cuidados. Agora, porém,
estou de volta, e por isso tomo a liberdade de pedir a V. Excia. que se digne
de dizer-me o que tem feito a favor do meu simpático e prezado Mr. Arnaud, e do
seu exemplar estabelecimento.
Contínuo a dizer a V. Excia. que não sou carranca e que desejo o
progresso do meu país, mas não seguindo a escola do realismo, não desejo ver certas coisinhas mostradas
no teatro.
Os nossos maiores diziam que a roupa suja lava-se em casa, e por
isso desde que imoralidade é roupa suja, não posso ver com bons olhos ela
lavada à vista de todo o mundo.
Digne-se V. Excia. de ir ao Alcazar que há de ter momentos de
verdadeiras comoções e então acreditará que eu não o estou enganando e que só
almejo ver nesta capital espetáculos onde possam ir as famílias mais graves e
honestas do Rio de Janeiro. Será difícil conseguir isto? V. Excia. decidirá, na
certeza de que faz um serviço real aos bons costumes, à nossa sociedade
moralizada e ao
De V. Excia.
Amigo
afetuoso e obrigadíssimo criado
Dr. Semana.
O Dr. Semana sai hoje fora do sério. Vai dar catanadas à direita
e à esquerda, porque está de um mau humor desabrido.
Foi-se o sol e veio a chuva. Acabou-se a chuva e o preguiçoso do
astro-rei mostra-nos apenas uma cara pálida e sombria, como de quem esteve a
dormir por muito tempo e acordou contra vontade.
É verdade que, com sol ou chuva, os hábitos desta boa, leal e heróica cidade não
se alteram.
Se o dia está calmoso os representantes da pátria não se reúnem
na câmara para se reunirem no Carceller.
Se o dia está chuvoso, também não se reúnem, porque é mais
gostoso ficar debaixo dos lençóis, do que se expor a apanhar alguma
constipação.
E o pior é que lhes acho razão, conquanto o país e a grande
imprensa entre já a queixar-se de tanto sueto e tanta cabula. Grita o Amazonas
que quer abrir-se; grita o S. Francisco que não quer ficar fechado; grita a
estrada de ferro D. Pedro II que está com sede e com vontade de beber água da
Serra; grita o governo que quer créditos suplementares; grita o país que quer
orçamentos, gritam todos enfim os que se julgam com direito a exigir do
parlamento os serviços que lhes são devidos.
Só os taquígrafos e os oficiais da secretaria da câmara não
gritam, e fazem muito bem, porque têm muita razão.
Para eles é indiferente que haja sol ou chuva. O que não lhes é
indiferente é que não haja sessão. Títiros à sombra das suas faias, preferem
tocar na rude avena a irem garatujar papel e aparar lápis.
Temos uma grande novidade a comunicar aos nossos leitores.
Cristóvão Colombo, em carne e osso, com as suas caravelas de pau pintado, acaba
de surgir em pleno teatro de S. Pedro, descobrindo o novo mundo e pondo um ovo
em pé, com grande admiração e aplauso de todos os homens sensatos e ilustrados
que não são pataus, e que por não pertencerem à confraria dos literatos
medíocres, que se elogiam mutuamente, e nem à companhia do teatro de S. Pedro,
de que é reformador e restaurador um homem extraordinário, que não é por ora
conhecido, estão no caso de darem sobre esse drama monumental (onde aparecem
158 pessoas vivas!!) um juízo seguro e imparcial. Pois apesar de tudo isso,
essa maravilha do século XIX ia passando despercebida se não fosse a agudeza de
engenho do redator da Gazetilha, que tendo ido casualmente à platéia de S.
Pedro, procurar o gato encantado do colar de pérolas, ficou embasbacado diante
do prodígio e anunciou urbi et orbi o
grande achado que fizera!
E foi uma fortuna. Porque este país não está preparado para tão
grandes coisas. E com exceção de muito pouca gente de gosto que por aí existe,
bem podem essas e outras maravilhas oferecerem-se à vista de todo o mundo que
ninguém os aprecia.
Em compensação, anuncia-se no Ginásio uma coisa ruim, que eu não
conheço, mas que, por força, há de ser muito vulgar e sensaborona, e sobretudo
há de ter o defeito da casaca e da luva de pelica, e o de não mostrar em cena
158 homens, nem nenhum navio fazendo fogo ao vivo, mas para a qual desde já
estão convidadas todas as pessoas de mau gosto do Rio de Janeiro. Essa coisa é
nada menos que um novo drama do autor da História de uma moça rica, intitulado A punição.
Quem estiver disposto a deitar fora o valor de uma cadeira e
perder algumas horas do bom sono, deixe de ir ver a descoberta do mundo novo
pelo novo Colombo, e vá assistir à representação dessa maçada em poucos atos.
Soam os clarins da guerra no campo do funcionalismo. Diretores
gerais e chefes de secção, primeiros e segundos oficiais, amanuenses e
praticantes, porteiros e contínuos, tudo anda num fervet opus! Chovem os raios de Júpiter Tonante sobre as cabeças
venerandas de todos os direitos adquiridos! O governo, que não é para graças,
descarrega sucessivamente golpes tremendos sobre a hidra das sete cabeças e no
meio de toda a lufa-lufa do temporal, sentem-se muitos ameaçados de um
naufrágio completo nas praias inóspitas da miséria!
Este negócio é que é profundamente sério. A imaginação do Dr.
Semana aterra-se diante do quadro lúgubre dessas decepções cruéis, e não tendo
meio de oferecer alívio a tanta desgraça junta, toma o partido de fechar os
olhos e de calar a boca.
Chiton!
NOVIDADES
DA SEMANA
8 DE MAIO DE 1864.
Devo prevenir aos meus leitores que este artigo há de ser longo,
pela importância dos sucesso da semana que aqui tenho de consignar.
Por isso, e para não cansar os leitores, ofereço-lhes aqui o
resumo das matérias com que me vou ocupar.
Vou tratar da nova companhia lírica que está a chegar.
Apresentar a estatística das faltas e dos dias de trabalho da
câmara dos deputados.
Do encerramento da 1.ª sessão e da abertura da 2.ª sessão da 12.ª legislatura.
Da assembléia provincial e do grande tamanduá que lhe chegou da Bahia, e que ameaça devorar inutilmente o tempo e
o subsídio da sessão extraordinária.
Da posse do povo presidente da província do Rio de Janeiro.
Do teatro Lírico e da exibição moderna do velho Ricardo III, onde a atriz Estela teve as honras da
noite.
Do teatro Ginásio e da primeira representação de um novo drama
do autor da História de uma moça rica.
Do teatro de S. Pedro e da descoberta do novo mundo dramático,
pelo Sr. Cristóvão Colombo Pereira Barbosa.
Do teatro de Santa Thereza de Niterói, que está caído e que
muita gente se propõe reerguer à custa da província.
Do melhoramento apresentado pela Semana Ilustrada com as suas
gravuras em madeira.
Da supressão de vários empregos públicos.
Da qualificação dos nossos diplomatas.
E etc., etc., etc..
Agora que está feito o sumário, vou começar o artigo ...
Dr. Semana.
CORREIO
DA SEMANA ILUSTRADA
8 DE MAIO DE 1864.
A S. Ex. o Sr. Dr. Chefe de Polícia, em
3 de maio de 1864.
A casa misteriosa da rua do Ouvidor n.º 93, canto da dos
Ourives, continua fechada em benefício dos ratos e prejuízo dos cofres públicos.
Este encerramento é um mote, que cada um vai glosando com ou sem
fundamento.
Os malévolos dizem: a casa não se abre, porque fecha o segredo
de algum crime.
Os supersticiosos resmungam: por ali anda alma penada; ali há
lobisomem; mora o mafarrico; ali aquenta-se panela de feitiços; ali tinem
correntes, abafam-se gemidos, dançam espectros, lê-se a buena-dicha, etc.
Os avarentos segredam: a casa está fechada desde a expulsão dos
Jesuítas; o dono herdou-a de um maioral da ordem, com a condição de não abri-la
senão depois que os discípulos de Santo Inácio conseguissem a revogação da bula
de Ganganelli. Na casa há enterrada chelpa grossa, barras de ouro, cofres de
jóias, vasos de prata, e é por isso que o proprietário, para não proceder à
exumação desses ossos preciosos, prefere perder a bagatela de 2:000$000 por
ano. É birra,
prosseguem os avarentos no seu diálogo secreto, é birra, que já está em muito
dinheiro, em cinco ou seis vezes o valor do feio prédio na mais faceira rua da
cidade, onde todos os dias as casas do tempo do onça se estão convertendo em
belos armazéns de lantejoulas.
Os mais discretos exclamam: o direito de propriedade tem
limites, não se deve confundir com o arbítrio de torná-la escarro em parede
limpa, foco de infecção, ninho de arganazes, baratas, lacraias e minhocas.
Se esse direito não tivesse limites, o proprietário que
embirrasse com sua propriedade poderia incendiá-la, demoli-la a tiros de
canhão, sem dar cavaco aos vizinhos e aos transeuntes, nem se responsabilizar
pelos escalavramentos de uns e outros.
Vê, Exmo.? são estas as versões que tenho ouvido sobre a casa
misteriosa, fechada desde as calendas da água do monte.
Eu não aceito todas as versões, repilo até a das almas penadas,
que é a mais verossímil para o capadócio do meu moleque.
Entretanto, dá-me em que entender o tal prolongado fechamento;
e, hoje mais do que nunca, por estarmos em monção de economia.
A décima da casa misteriosa pode adicionar-se ao produto da
supressão dos praticantes das secretarias.
Creio na última glosa.
O direito de propriedade tem limites. Acho até escandaloso o
mistério de fechamento.
V. Excia., se quiser, pode averiguar o segredo da abelha, que
fechou a imunda colméia.
Chame-a a contas, Exmo.; e em nome da civilização, do
desemperramento, do bem público, do aformoseamento da rua do seu antigo colega
ouvidor, que Deus haja, obrigue V. Excia. o proprietário birrento a
desembirrar-se, abrindo a casa endiabrada.
Faça-lhe este favor, Exmo ., e conte com os aplausos de quem se
preza de ser
De V. Excia.
Muito atencioso venerador e amigo obrigado
Dr. Semana.
Os carrancas clamam contra o progresso, e os céticos esfalfam-se
em negá-lo.
Negar o progresso, que heresia!
Quando mesmo se possa fazê-lo conscienciosamente não estão aí
mil inventos pasmosos atestando a existência dele?
Por exemplo, em matéria de estilo, todos pensam que tudo está
descoberto, que todos os estilos já se acham consagrados...
Puro engano!
Tínhamos até aqui:
O estilo elevado; o estilo nobre; o estilo simples; o
estilo obscuro; o estilo nervoso; o estilo claro; o estilo abundante; o estilo
seco; o estilo dramático; o estilo épico; o estilo cômico; o estilo trágico; o
estilo epistolar; o estilo chulo; o estilo pesado; o estilo ligeiro; o estilo
gótico; o estilo dórico; o estilo renascença; o estilo árabe, etc., etc., etc..
Parecia impossível inventar mais um estilo.
Pois inventou-se. Chama-se:
O Estilo Leiloeiro!
Não se parece
com coisa alguma o novo estilo. É original, é
inqualificável, indiscutível; lê-se, admira-se, e não se passa daí.
Aquilo que ninguém pode inventar, aquilo que esquece ao
dentista, ao calista e ao droguista (ao droguista sobretudo), não esquece ao
leiloeiro.
O anúncio em latim foi uma invenção leiloeira; o primeiro que
usou dele bateu palmas; mas o vizinho não admitiu a vitória e recorreu à língua
de Péricles e Aspásia.
É verdade
que todos eles tiveram a precaução de inserir ao lado a tradução, sem o quê,
corriam o risco de não vender uma peça de pano.
Costumo ler os tais anúncios, e às vezes caem-me debaixo dos
olhos expressões realmente felizes.
Por exemplo, anunciou-se há dias um — Raro e importante leilão de História Natural.
Imagine o leitor que leilão seria. Sentem-se calafrios ao pensar
que um tigre de Hircacânia, uma onça de Goiás ...
Mas não: mais adiante temos a explicação nas seguintes palavras
textuais:
— Ricas redomas de pássaros de todos os tamanhos e qualidades,
de diversas províncias do Rio de Janeiro.
Com uma pena e certa disposição o anunciante faz esta reforma
política: torna o Rio de Janeiro estado independente e recorta-o em províncias.
O anúncio é a verdadeira ciência moderna.
Dize-me como anuncias, dir-te-ei que manhas tens.
*
* *
É verdade que isto de
imprensa é coisa difícil.
Todo o cuidado é pouco; é aí que o Capitólio anda ao pé da rocha
Tarpéia.
Agora mesmo, folheando uns papéis, dei com uma nota de
lembrança. Era um pedaço transcrito de um jornal de província.
Tratava-se do cólera-morbus. O redator da folha aparou a pena,
assuou-se, e em artigo de fundo traçou uma larga exposição que começa por estas
palavras:
“Não temos em mira mostrar erudição, visamos interesse maior, o
de sermos úteis a nossos semelhantes; lembrados do mandamento escrito nas
tábuas da lei, dadas por Deus a Moisés. O mandamento — Amar ao próximo como a
si mesmo— é uma sublime epopéia escrita pela mão Divina.
“Amamos ao próximo, escrevemos para o povo.
“Não somos da escola contagionista,
e, pois, principiamos por aconselhar que mostremos à vista do inimigo sangue
frio e coragem. O medo causa diarréia; a diarréia é um dos sintomas precursores da cólera, aos tímidos ela ataca com
maior intensidade. O medo pode igualmente aconselhar uma completa abstinência
de alimento, será mais um grave erro, porque da abstinência nascerá a falta de
forças, a inanição, que também debilita e mata “.
É muito
bonito, mas eu prefiro Cícero.
*
* *
Vem a propósito, já que falo em imprensa, citar uma bernardice.
Eu não sou assinante da folha de que se trata, mas o meu amigo
M., que costuma recebê-la, foi que me mandou um número dela.
Houve no número anterior a esse alguns erros; o redator
apressa-se a corrigi-los, e diz;
“Reparação.
— Depois de impressos e distribuídos alguns exemplares do nosso último número,
deparamos com uma inexatidão contida no Noticiário acerca
das eleições que vêm de proceder-se; bem como alguns erros mais, o que logo
corrigimos, como se vê nos outros exemplares que foram distribuídos “.
Vão agora saber quais são os errados e os corrigidos.
*
* *
Dizem as crônicas que na antiga república de Veneza a ponte dos
Suspiros servia para despejar ao canal os condenados de certa ordem.
A execução era de noite, e no meio do silêncio; apenas a água
agitava-se um pouco, e nada mais.
Pouco mais ou menos é o que acontece aqui no Rio de Janeiro na
ponte da Guarda-Velha.
A diferença é que, no nosso caso, devemos fazer honra à alta
imparcialidade dos juízes, que devem obedecer e obedecem a duas coisas, à
consciência e à legalidade.
No mais, é o mesmo.
A água que se agita é o simples murmúrio, que a imprensa há de
repetir.
O silêncio é completo.
É um sistema que eu não cesso de preconizar, porque dos males o menor, e a mania
da palavra está tão desenvolvida entre nós que, a não ser a nova reforma, os litigantes gastariam mais tempo consigo que com o bem
público.
*
* *
Do parlamento à igreja vai a distância de uma farda a uma
sobrepeliz.
Entremos na igreja para ouvir a missa do maestro brasileiro
Henrique Alves de Mesquita.
Mesquita é um grande talento avigorado por sólidos estudos.
É uma
coisa que ninguém contesta.
Por isso foi grande a afluência na igreja de S. Francisco de
Paula, onde se cantou a missa do autor do Vagabundo.
Todos estão de acordo em que a nova obra de Mesquita é uma obra
de inspiração e de estudo, e mais um florão para a sua coroa de compositor.
Eu junto os meus aplausos aos de todos.
Mas ponho entre eles o meu conselho.
Aos talentos conscienciosos pode-se aconselhar, porque eles
sabem ouvir e discutir.
O meu conselho é que o maestro brasileiro estude com mais
cuidado o gênero sacro e as obras dos velhos mestres alemães e italianos.
A sua missa tem ressaibos de música profana.
A música sacra, que é difícil, e para a qual o autor do Vagabundo tem grande propensão, precisa ser mais
profundamente estudada por ele.
Cabe-lhe o papel invejável de ser o continuador de José
Mauricio. A arte brasileira atual precisa de um Beethoven: Mesquita pode sê-lo,
e é para que o seja que eu lhe dou estes conselhos de amigo e admirador.
Foram excelentes as vozes que cantaram a missa.
Mas, se nos é dado preferir entre tantas e tão belas,
mencionaremos aquela voz que tantos admiraram nas composições de Francisco
Manoel, o ilustre mestre. Essa foi perfeitíssima..
*
*
*
Um contraste:
De uma missa a uma comédia, que abismo!
A comédia é a Família Benoiton de Sardou, representada no Ginásio.
Escasseia-se-me o espaço, pouco direi. De mais... não se trata
de falar, trata-se de ir ver a peça, que é de primo cartello.
Não digo que não tenha imperfeições esta peça; e algumas
visíveis; mas as suas qualidades são também visíveis, e daí vem o sucesso que
teve.
O diálogo é vivíssimo e animado.
As cenas originais.
O espírito a jorros.
Os traços e as pinturas de costumes excelentes.
O interesse é de princípio a fim.
Está montada com luxo e gosto.
Os artistas geralmente vão bem, desde Furtado Coelho, que é
primoroso, até o menino Monclar, que é a aurora de um belo dia.
Meus parabéns ao Ginásio.
—Está pronto o artigo? pergunta-me o paginador.
Leitores, é assim, não somos nada diante do paginador.
Até domingo.
Dr. Semana.
NOVIDADES
DA SEMANA
15 DE MAIO DE 1864.
Não serei eu quem diga que a novidade mais importante da semana
foi a fala do trono.
Muito menos a resposta à fala do trono.
Toda pergunta tem resposta, diz o código da civilidade, e toda
resposta deve ser dada pelo caso por que se fez a pergunta, diz a gramática.
E sendo a fala do trono, além de uma coisa obrigativa, uma
espécie de Deus te salve ou Dominus tecum à
câmara temporária, que, como se sabe, tem quase sempre uma oposição, eu não
quero dizer posição constipada, nada temos a observar sobre esse assunto.
Desta vez, porém, se eu caísse na esparrela (é frase parlamentar
atualmente) de meter o bedelho nessas coisas, muito teria a dizer sobre a
situação e sobre a câmara que reduzida, por falta de transpiração, a espirrar
freqüentemente, acha somente quem lhe dê o Deus a ajude sem encontrar
quem lhe empreste um lenço, que é o de que ela mais precisa.
Os guardanapos parlamentares andam um pouco estragados. Diz o
rifão que — quem nunca comeu mel quando come se lambuza. Não quero fazer
aplicação do ditado, mas todo o mundo está vendo que no banquete político está
sentada muita gente com a boca suja.
A novidade da semana ... para não continuar a ter os leitores em
suspenso, vou dizer-lhes qual foi: foi a representação do novo drama do
talentoso autor da História de uma moça rica,
o Dr. Pinheiro Guimarães.
Intitula-se a nova composição do poeta — Punição. — Modelado no gosto da escola romântica, o drama do Dr. Pinheiro Guimarães é um
desses poemas sombrios que comovem profundamente o coração.
Há nele muita verdade, porque há muito sentimento. A inspiração
foi vigorosa e bem sustentada. Os caracteres estão delineados com firmeza.
Felizmente para nós todos, o autor da Punição já não precisa de elogios de animação. Literato
distinto, recomendado por tantas provas, goza de merecido conceito, e constitui
hoje uma das mais viçosas esperanças da literatura dramática nacional.
É diante desses esforços dignos e coroados de tão feliz resultado, a despeito de
obstáculos e tropeços de todo o gênero, que lamento profundamente a decadência
a que chegou o teatro entre nós, a despeito de tantas centenas de contos de
réis gastos improdutivamente, estupidamente, indignamente.
Compreendo que estes advérbios são um tanto pesados, mas não há
remédio senão dar ao gato o seu verdadeiro nome.
Se o governo atual, que conta em seu seio nada menos, que dois
poetas, fizesse alguma coisa em bem da instituição a que me refiro, prestaria
um bom serviço ao país.
Há na câmara representantes ilustres da causa das letras.
Sabe-se até que um deles trabalha por alcançar uma medida legislativa que
restabeleça o teatro e abra novos horizontes à inteligência nacional.
Oxalá consiga o que deseja!
No próximo número falarei sobre a execução do drama.
Outra novidade importante foi a dissolução do Conservatório
Dramático Brasileiro... Deus fale n'alma do finado, porque eu, ao menos, nada
posso dizer dele.
Andam por aí em ruge-ruge boatos
assustadores. Diz-se tanta coisa, que a gente não sabe ao que dar crédito.
Entretanto, não darei fim a esta resenha, sem referir-me às duas
novidades que de propósito guardei para o fim.
É a primeira o anúncio faustoso do próximo casamento das nossas sereníssimas
princesas.
Conquanto se ignore ainda quem sejam os felizes prometidas
noivos, o júbilo da nação, casado ao júbilo da família imperial, e unidas em
uma só as aspirações do país e dos progenitores das interessantes princesas, a
esta hora fazem todos votos pela felicidade e pelo acerto da escolha.
Se este acontecimento encheu de júbilo a família imperial, outro
veio amargurá-la. Falo do falecimento do Sr. Bispo de Crisópolis, por cujo
motivo tão dolorosamente impressionados se mostraram o Imperador e sua família.
O ilustre finado recebeu, ao descer à sepultura, todas as homenagens devidas às
altas honras que o distinguiam.
Dr. Semana.
Eram cinco e meia da tarde em 4 do mês de maio, em que canta o
cuco no ano da graça corrente.
O sol, dardejando frouxamente, ia caminho do ocaso, incumbindo o
crepúsculo de dar muitas saudades à próxima noite, que já estava a sacudir o
manto estrelado e de seu uso quando se resolve a ser escura como o azeviche.
Os transeuntes cruzavam-se pelo largo de S. Francisco, uns em
procura de ônibus, de gôndolas e de diligências, outros em direção à maxambomba
e não poucos em colóquio sobre o que haviam feito antes e depois do jantar.
De súbito, partem do campanário do Santo de Paula sinistras
badaladas tangidas por mão de solícito bombeiro.
— Fogo! gritam mil vozes, fazendo horrível assonância com o
rodar de carros, o apregoar do sino, o trotear dos cavalos.
— Onde é? onde será? perguntam-se os curiosos, enovelando-se,
acotovelando-se, abalroando-se pelo Rocio e ruas adjacentes.
Basta nuvem de fumaça, chanfrando-se pelos telhados da rua da
Carioca, não deixou duvidoso o lugar do incêndio.
Acudiu àquela paragem povo aos magotes, gente a troços como se
tivesse de ascender às regiões da lua o balão da falecida Mme Blanchard.
— O incêndio é no Mal das Vinhas — titubeou um latagão a dar às de Vila Diogo para o quartel das
bombas — pegou no fardo de bisnagas e vai-se comunicando à barrica da
caparrosa.
— No Mal das Vinhas ... parabéns aos irmãos universais dos países vinhateiros — disse um garoto de
Lisboa a um janota do Porto. — Vamos agora ter chuva de vinho a cântaros! Lá se
foi o feroz oidium,
inimigo mortal da cepa torta.
De feito, era o fogo no quintal do ilustre filho de seu delicioso pai, o filantropo mercador de tudo quanto existe e de outras coisas
mais.
Apareceram os bombeiros, as autoridades policiais, sem levar
ponto o nosso amigo capitão Pimentel, que na sua fé de ofício de comandante dos
pedestres já tem registrado... não sei quantos incêndios apagados e por apagar.
Dez ou doze golfadas de mangueira bastaram para sepultar nas
trevas o audacioso, que se preparava a obsequiar o resto do dia com um novo e
formidável fiat lux.
Nem houve chamas senão as do bronze pregoeiro.
O monstro devorador, segundo a Gazetilha, só queimou algum ferro, algumas tintas e outros objetos mais,
difíceis de classificar entre os variadíssimos da feira do estimável mercador.
Extinto o incêndio, surgiram as versões. A mais verossímil é a
que passo a transmitir aos leitores.
Às cinco horas da tarde, estando o dono do armazém de variedades
a vender um par de botas, soube, por informações de um pequeno da casa, que no
telheiro dos fundos lavrava fogo.
— Deixe lavrar, menino; estou aviando freguês.
Recebida a importância das botas, o fleumático mercador
dirigiu-se ao quintal do prédio.
Viu, com efeito, fogo, mas estranhando o caso, porque a cozinha
do estabelecimento é lugar mais fresco de todo ele, evocou os manes de seu delicioso pai, saiu e foi à polícia, com toda a
gravidade de fabricante de publicados,
dar parte de que o seu asilo, inviolável pela Constituição, estava sendo
violado por um desalmado intruso. Pediu providência.
Foi deferido, como ficou visto.
O fogo pegou realmente no fardo de bisnagas chegadas de Lisboa
no paquete inglês último, com o fim de serem grátis distribuídas por indivíduos de ambos os sexos atacados das supraditas.
Desse fardo comunicou-se ao barril do sulfato de ferro, não ao ferro puro, como por engano desculpável
declarou a sempre bem informada Gazetilha.
Estendeu-se depois aos outros objetos, que não vêm referidos no novo método de publicar incêndios.
Os prejuízos foram poucos, assegura a preconizada Gazetilha.
Engano de mais.
Foram muitos os prejuízos. Além dos ratos, baratas, traças,
cupins, que arderam nas chamas abafadas, lá ficaram reduzidas a cinzas 1.500
bisnagas, quatro arrobas de mata-mal das parras, e, o que é para lamentar-se
deveras...
“Oh! que não sei de nojo como o conte...”
inutilizou-se com a água das bombas um enorme publicado sobre a aplicação das bisnagas, com destino
ao Jornal do Comércio,
“Que foi só quem perdeu no tal joguinho.”
Com esta perda, fatal à saúde de tanta matrona e mais fatal
ainda à literatura, debulho-me em pranto e nem posso noticiar aos leitores que,
na extinção do incêndio, funcionaram pela primeira vez, e com êxito feliz, as
seringas propagadoras da espécie bovina, desprezadas injustamente pelos
criadores de gado vacum.
Perdão, amáveis leitores e adoráveis leitoras; este
acontecimento por muito tempo há de conquistar o
Dr. Semana.
NOVIDADES
DA SEMANA
22 DE MAIO DE 1864.
Sim, senhor. As coisas andam introviscadas de modo que as novidades
sucedem-se umas às outras sem ninguém saber a qual delas deve dar crédito.
Diz-se que o ministério cai. Diz-se também que o ministério não
cai.
Diz-se que o futuro organizador do gabinete é o Sr. conselheiro
Souza Franco.
Diz-se também que será o Sr. Nabuco.
No meio desta balbúrdia, Pedro Botelho que se entenda.
O que é certo, é que o ministério da Semana Ilustrada não cai. E não cai, porque se entende perfeitamente com o seu
parlamento nacional.
Parlamento nobre, inteligente, numeroso, mas todo muito cordato,
exigente sem impertinência, suscetível sem ser zangado, e, o que é melhor,
pagante sem recalcitrar.
Também o que ele pede é pouco e o que não pede é muito.
O que ele pede é que o façam rir; que lhe deleitem o espírito
sem maçá-lo, que toquem o coração sem comovê-lo com emoções profundas.
O que não pede, então, é maravilhoso. Não pede empregos, nem
missões especiais, nem presidências, nem estradas de ferro ou de rodagem, nem
navegação aérea ou marítima, nem diminuição do imposto da assinatura, nem duas
folhas para um só assinante, enfim, não pede nada.
Na galhofa de bom sal e no gracejo inocente não vê, felizmente,
ataques à sua liberdade, à sua soberania, à sua moralidade.
Por isso nunca houve nem haverá jamais melhor acordo entre dois
poderes independentes.
As nossas esferas estão traçadas de modo que são
concentricamente paralelas. Não há meio de se chocarem.
Em compensação, o ministério da Semana é essencialmente constitucional. Não ofende
por modo algum as garantias do seu público, quero dizer, do seu parlamento.
Tranqüilizado por esta forma o espírito público, e ainda no uso
de uma faculdade constitucional, tem ele a honra de declarar às casas do seu
poder legislativo, que os artistas do Ginásio, no desempenho do belo drama do
Dr. Pinheiro Guimarães, bem merecem da pátria, e fizeram jus, não direi a uma
condecoração que lhes dê honras de alferes ou tenente, ou mesmo de cabo de
esquadra, mas a uma aposentadoria condigna.
Adelaide, Julia, Clélia, Pedro Joaquim, Graça, Vasques, Paiva e
todos quantos tiveram a subida honra de merecer a confiança do autor da Punição, para interpretarem o seu poema, deram
provas de estudo, de aplicação, de talento e de boa vontade.
Agora que está feita a proposta do poder executivo, cumpre ao
público, sempre me esquece dizer parlamento, distingui-los e animá-los,
honrando-os com seus aplausos e concorrendo com o seu óbolo para a conservação
desse teatro, que tantos serviços pode prestar à literatura dramática nacional.
Dr. Semana.
UM
COMETA QUE NÃO SE ACHA NO ALMANAQUE
É costume
na câmara dos Srs. deputados grudarem-se umas às outras as emendas que se vão
oferecendo aos projetos em discussão.
Eu entendo que se devia por isso mesmo deixar o nome de emendas e adaptar-se o de grudadas para aqueles papelinhos que escrevem em
cima da coxa.
Mas vamos ao caso.
Na discussão do orçamento do ministério da agricultura, comércio
e obras públicas, choveram emendas a rodo.
Na sessão de 30 de Maio o meu amigo Paranaguá, que estava
Paranaguando ou Piauiando na tribuna, pediu à mesa que lhe mandasse uma certa
emenda; como, porém, todas as emendas estavam grudadas, foi um gosto ver o
presidente e secretário a desenrolar e enrolar o papelório: era uma tira que
podia estender-se do Pão de Açúcar ao Corcovado! O respeitável fugiu das
galerias, pensando que era um Cometa que mostrava a
sua cauda.
E todas aquelas grudadas tinham
por fim desgrudar do tesouro público não
sei quantas centenas de contos de réis!
Era, portanto, na verdade, um cometa. Mas, ainda bem que a
câmara cortou na votação o rabo do bicho.
Dr. Semana.
NOVIDADES
DA SEMANA
19 DE JUNHO DE 1864.
Uma novidade para a semana! Ninguém a fornece? Tanto pior para
mim e para vós, leitores.
Os jornalistas, e sobretudo os cronistas, são os maiores mágicos
do meu conhecimento. Iludem ao público de maneira singular e impingem-lhes,
pelo valor de uma assinatura, a mesma novidade que recebem grátis das mãos do
respeitável público.
Se me não dais, não vos dou — tal é o dístico, que deviam trazer
todos os jornais noticiosos.
É exatamente
essa a minha posição neste momento.
Não posso dar ao público o que ele me não forneceu; nem hei de
inventar para a Semana novidade que a semana não produziu.
Porque, além disso, não me hei de ocupar com o sol e com a
chuva, se bem que as
modificações atmosféricas exerçam grande influência nas regiões políticas do
país, e que a câmara dos deputados esteja servindo de termômetro à população,
mas termômetro tão infalível como as folhinhas de Mathieu
de
Nem me devo ocupar com o programa, que não é programa, que foi
aprovado, e que não foi aprovado, que é e que não é ao mesmo tempo, porque esse
tema já esgotou a musa de todos os charadistas políticos da terra.
Não é também da minha competência, visto que não sou poeta,
analisar até que ponto os discursos dos senadores, que atacam e que defendem os
poetas e os versejadores, são razoáveis ou deixam de sê-lo.
Nem tampouco apreciar a importância política e americana, que
podem ter as violências praticadas pelos espanhóis com os peruanos, quando vejo
que aqueles se contentam com um pouco de guano para
se desafrontarem de todo.
Não falarei também dos eclipses sublunares, que se têm dado no
Teatro Lírico pela súbita aparição do célebre nariz cantante, a quem se tem
aplicado os versos do satírico poeta, cujo nome não figura
no Almanaque:
Nariz de embono
Com tal sacada,
Que entra na escada
Duas horas primeiro que seu dono.
..............................................
Você perdoe,
Nada disto. Estes gracejos não são bonitos, sobretudo quando se
referem a uma artista que não é de todo feia e que de todo não canta mal.
De um nariz desse tamanho precisava o Sr. Labe, para tomar uma pitada
na torre do Carmo, desde a corda tesa, que atravessou do boulevard Carceller à cimalha da casa fronteira, e
onde se diverte aos domingos, passeando sobre ela e por cima do Niágara das mil
cabeças que o contemplam. Não sabemos se esse exercício ao ar livre tem
alentado muito ao intrépido funâmbulo.
Por falar em espetáculo ao ar livre, vem a pêlo falar de um
espetáculo, representado sob a atmosfera pesada da pobreza. Refiro-me ao
benefício, ou antes malefício, feito no Teatro Lírico, pela eminente atriz
brasileira a Sra. D. Estela Sezefreda dos Santos.
Por Deus! não é só o amor da arte que
falece nesta terra, é também o amor do próximo!
Uma artista, que tem tradição tão gloriosa em nosso palco, e que, no declínio
da vida, luta quase com a miséria, para poder sustentar honradamente a suas
filhas, tinha direito a esperar maior concorrência do público.
Dr. Semana.
NOVIDADES
DA SEMANA
26 DE JUNHO DE 1864.
Por uma triste novidade deve começar a Semana; o mundo político e a boa sociedade acabam
de perder um dos seus mais belos ornamentos. O Visconde de Maranguape desceu ao
túmulo. E, bem que adiantado em anos, conservava, a despeito dos insultos da
enfermidade que o prostrou, o espírito vivaz e ameno que sempre o distinguiu.
Feia tem corrido a semana. O santo folgazão, que até dos moiros
da moirana é festejado, teve desta vez festa molhada. O carrancudo sol fechou o
sobrecenho e, amuado, escondeu-se por detrás das nuvens, que não há mais vê-lo.
O corpo legislativo (que é o nosso sol
político) entendeu que devia fazer o mesmo. E, escondido embaixo dos lençóis,
tem deixado desertas ambas as casas do parlamento.
O ruge-ruge do casamento das sereníssimas princesas já começou a
pôr em atividade os habitantes do Rio de Janeiro.
Caiam-se as casas, pintam-se as janelas e cada qual trata de
aformosear a sua fachada.
Com exceção da mordomia imperial, que já mandou limpar o paço da
cidade, parece que as outras estações públicas não têm pressa.
Grandes novidades artísticas se anunciam.
Acha-se entre nós a rainha da cena portuguesa, Emília das Neves.
Não sabemos ainda quando pretende dar ao público fluminense o
prazer de vê-la em cena, mas parece fora de dúvida que a eminente artista não
deixará de brindar-nos com a exibição do seu celebrado talento.
Outra grande novidade é a que se refere à pequena companhia lírica dos meninos florentinos,
que vão também representar algumas peças do seu variado repertório.
À fé que há de ser divertido ver e ouvir as prima-donas de 12
anos, os barítonos e baixos profundos de 13 anos.
A concorrência não faltará decerto, e
conquanto não seja o Provisório a cena mais apropriada para esse curioso
espetáculo, parece decidido que nesse grande barracão tenha lugar a festa já
anunciada.
O Alcazar enfeita-se também e pretende ter duplas receitas com a
estréia do novo pessoal cantante que lhe chegou. E o pior é que, ao passo que a
arte vai decaindo, os espetáculos dos botequins dramáticos vão atraindo a
concorrência!
Espera-se também proximamente a novidade de uma companhia,
contratada em Lisboa, para vir regenerar o teatro nacional. Deus a traga, para
vermos até onde pode chegar o progresso desta terra.
Andam desde já num sarilho as comadres influentes nas freguesias
da cidade, aplainando o terreno para as eleições de vereadores, que terão lugar
em setembro.
Os fiscais, quero dizer, os Ilmos. Srs. fiscais, andam num
corrupio.
Reuniões sobre reuniões, discursos, promessas, chegou-lhes o seu
S. Martinho. Agora é que é mostrar influência.
Como tudo isto é divertido! E edificante! E útil aos interesses
deste pobre município neutro, que está condenado a ficar eternamente sujeito às
variações do tempo e das câmaras!
Ferve agora o patriotismo. Cada qual tem um projeto de embelezamento
municipal.
A propósito de beleza municipal, cumpre-nos participar ao
público que para os lados do Passeio Público houve há dias uma revolução e um
alvoroço muito sério.
Foi o caso, que rebentaram os canos da City Improvements limited e, ao contrário do dístico, não houve
limite na porcaria e na fedentina, que empestou o bairro.
Olhem que custam caros todos os melhoramentos progressistas
desta terra, mas são muito bons!
Dr. Semana.
FIM